domingo, 23 de junho de 2013

CD - Capítulo 1

Sinto minha mente clarear aos poucos. Os pensamentos, ainda desordenados e confusos, vindo à tona.
Preparo-me para o jorro de informações; algumas possivelmente dolorosas, já que antes aqui vivia uma Alma entre humanos. Humanos que eu ainda não sabia quem eram, mas os primeiros sentimentos que tomaram esse corpo assim que eu tive consciência dele foram dois: desespero e saudade.

Não exatamente essa última, mas foi assim que inicialmente pude classificar a falta do preenchimento em meu peito, que parecia mais vazio do que deveria. A dor do nada. O que estava aqui antes? O que estava aqui antes, que fazia com que esse corpo estivesse sempre com o coração cheio de alegria? Eu sinto falta disso. Não sei o que é ainda, mas quero muito, muito essa coisa de volta aqui.

Eu havia sido preparada para as dores que se seguiriam aqui dentro; não a física, mas a emocional, que muitos que vieram daqui dizem ser ainda pior. Mas eu tinha escolhido vir para este planeta exatamente por esse motivo. A vontade de... sentir. Não como nos Ursos, minha última espécie hospedeira. Eles eram capazes de sonhar, de amar, de pensar, de desejar coisas bonitas; mas nem um terço parecido com os humanos. E eu queria sentir algo quente, algo intenso, alguma coisa que pudesse me fazer sentir... viva.

Eram incríveis as histórias que as Almas que tiveram hospedeiros terrestres contavam. Elas me fascinavam de uma maneira que seria impossível para mim não vir à Terra algum dia; saborear e sentir essas emoções únicas. E já estou sentindo. Mas agora, não sei realmente se gosto. Essa ansiedade mutilante me revira o estômago. Essa dor dilacerante rompe as fibras dessa hospedeira.

Meus pontos estão ligados corretamente no diminuto corpo. Audição, olfato, paladar, tato. Sinto-os todos, agora todos meus. Posso mover minhas mãos, sentir o cheiro de algo fisiológico no lugar onde estou, os bipes surdos e ritmados ao meu lado, o gosto seco na minha boca. Tenho acesso a tudo, tudo do meu corpo. Então, estou pronta. É algo que não se pode adiar. Trinco os dentes, sentindo a primeira lembrança vir:


“Foi tudo rápido, confuso demais. Em um minuto estávamos voltando para casa. Jared ao volante, Mel ao seu lado, os dois conversam alegremente sobre novas coisas que compraram para Jamie. Aaron e Heath a uns centímetros de nós, conversando também. E eu aqui com Ian, a cabeça encostada em seu ombro, ele brincando com meus cabelos. Está tudo bem; como sempre.”


Ian. Esse nome me traz uma nova sensação, um alvoroço no peito. Tingem o interior das minhas pálpebras de azul. Não qualquer azul... Safira. Neve. Safira. Meia-noite. Eu quero me agarrar a esse azul, mas as memórias me engolfam novamente, sem me dar tempo para mais nada.


“Então, um som coloca tudo de cabeça para baixo. Sirenes. Não apenas um som irritante e rodopiante. Dessa vez não há apenas um jogo de luzes vermelhas e azuis no chão de asfalto da estrada. Há vários deles, um som agoniante e extremamente desconexo para vir apenas de uma viatura. Luzes demais para vir apenas do carro de um Buscador. São muitos. Estamos todos paralisados no lugar. Jared não aumentou a velocidade; e ele não vai fazê-lo. Assim como da última vez, ele sabe que isso apenas vai fazer com que os Buscadores nos sigam, e denunciemos toda a nossa família. Então, pouco a pouco, o carro para, a velocidade diminuindo. E eu vejo. Não há escapatórias dessa vez, nada que eu poderia inventar. Não com tantos humanos num só carro – uma vez que Kyle conseguiu bater o caminhão mês passado-, não com tanta comida inexplicável. Não com a tamanha rapidez com que ouço os passos dos Buscadores correndo em direção ao nosso carro.

‘Me desculpem, por favor, por favor, me desculpem’ pede Jared, ele já está com sua pílula entre os dedos. Melanie olha para ele, horrorizada. ‘Nós não estávamos correndo! Deve ser outra coisa!’, ela diz, o tom desesperado, os olhos voando para a pílula nas mãos de Jared, que reprime os lábios e ergue os ombros, claramente dizendo que aquilo não importava. Ele pega o queixo de Mel e a beija. Eu olho para Ian, diretamente em seus olhos, que estão fixos nos meus, tomados de dor ‘Eu amo você’ eu sussurro ‘Mais do que minha própria vida’ Ian encosta os lábios nos meus cabelos ‘ Eu também amo você, minha Peregrina. Mais do que minha própria alma.’ Ele diz debilmente. Encosta intensamente seus lábios nos meus, e então pega sua pílula. Eu sufoco de pavor.”


Um som rasga minha garganta. Ele não pode morrer, ele não. Eu quero acordar, abrir meus olhos para sair dessa onda de dor. Mas sou invadida por mais uma onda de memórias.


“’São humanos! Humanos no carro!’ ouço um Buscador gritar, então caio em mim. Minha pílula já em mãos, a de Ian sendo levada a boca. Eu grito. ‘Não Ian, não!’ eu choro, implorando por mais uma chance. Mas não há chances dessa vez. ‘ Tudo bem, Peg. Ficaremos bem, em qualquer lugar em que nós dois estivermos’, ele promete, sorrindo em meio a seu próprio pânico. Olho para Jared e Melanie, que seguram as mãos um do outro tão forte que elas já estão ficando brancas. Heath, que na terceira incursão da sua vida já vai morrer, com sua pílula apertada na mão. Aaron, com os olhos fechados, a passagem para sua morte a centímetros da boca.

’Esperem!’, grito novamente, sem pensar. Mas não posso deixar que meus humanos morram. Todos olham para mim, os olhos desolados, pedindo por mais uma esperança. ‘Corram’ é tudo que digo. Então, num rompante de cinco segundos para reflexão, Jared abre a porta de motorista, puxando Mel com ele, e eles começam a correr. Heath e Aaron logo atrás sem pensar, seguindo-os. Ian me puxando também, nós dois tropeçando nas comidas até chegar na porta do motorista, e então, estamos correndo em disparada, no meio da estrada pouco movimentada. Nós não paramos para pensar em que possibilidades teríamos de nos salvar de uma horda de Buscadores armados, que eles nos seguiriam com seus carros velozes, que atirariam na gente antes mesmo de conseguirmos nos embrenhar nos arbustos secos a leste que poderiam ser nossa única salvação. Apenas mais uma tentativa; mesmo sabendo que ela seria falha.”


Minhas mãos estão fechadas em punhos apertados. A adrenalina subindo por minhas veias, dando a mim uma sensação que eu nunca tinha sentido antes. Os últimos momentos desse corpo e da alma dentro dele foram mais do que eu já tinha passado.


“Um pequeno e estúpido erro. Um momento breve, praticamente imperceptível. Todos indo embora do hotel, caminhando até o furgão com nossas últimas sacolas nas mãos. Então, a recepcionista do lugar passa por nós, acenando em reconhecimento para mim, quando no mesmo momento, outro carro passa também, com o farol ligado, passa rapidamente por nossos rostos. Os meus olhos brilharam, mandando lances prateados para o chão. Só os meus. Os de Melanie, Jared, Ian, Aaron e Heath, não. Um pequeno descuido como esse, que agora custa nossa vida. Eu imagino a recepcionista de meia-idade percebendo aquilo, disfarçando, ligando para os Buscadores para avisar que vira olhos que não brilhavam. Olhos humanos, só poderia ser. Não sei o que ela deve pensar de mim, o que deve achar que estou fazendo, que tipo de alma eu sou. Não importa agora. O que eu sou vai acabar em poucos minutos, mas já estamos perto dos arbustos, o que poderia nos dar a chance de esconder-nos entre eles, despistarmos talvez os Buscadores. Eu estou cansada, minha respiração saindo em arfadas rápidas. Ian está a metros de mim, correndo mais devagar para que eu possa acompanhar sua passada mil vezes maior. Não sei o que aconteceu com os Buscadores, eles não estão vindo atrás de nós. Melanie e Jared estão entre os arbustos agora, ignorando as espetadas dos seus galhos finos e pontudos. Aaron os acompanha, seguido por Heath. Quando Ian entra também, eu sinto uma esperança surgir. Talvez possamos fazer o impossível. Eu atravesso ligeiramente os poucos metros que restam para mim, desviando de algumas pedras, e então... Sinto uma bala perfurar minha perna direita.”


E então, mais outra. Um suspiro final. A dor dando fim a tudo.


“Peg! Peg!” ouço a voz de Ian urrar. Ele está vindo em minha direção, mas Aaron segura seu ombro, ao mesmo tempo em que eu tento dizer para ele não voltar. Eu tento rastejar, de qualquer maneira, minha perna sangrando e com uma dor exorbitante. Minha visão embaça, mas eu continuo.

Ouço meu nome mais uma vez, mas essa é a voz de Mel. Sei que Jared não a deixará voltar, então me esforço apenas com Ian, que sei que daria um soco em Aaron para poder vir em meu socorro. Estou quase no limite, os braços não aguentando todo o peso do meu corpo, que parece pesar uma tonelada agora. Minha esperança de me salvar é nula, antes mesmo de eu sentir outra bala em mim, dessa vez direto no peito, se alojando no coração. Não há tempo para mais nada. Meus sentidos se apagam, minha visão se apaga e tudo em mim morre. E o meu último pensamento voa para longe, ecoando um pensamento de outra vida que não era meu: Falhei.”


E então não há mais nada.

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