terça-feira, 25 de junho de 2013

LDS - Capítulo 1

Viver em um planeta frio pode ser desagradável.

Não que eu não tenha tido uma boa vida lá, mas confesso que quando o frio é tão frio que o gelo parece fazer parte de você, qualquer raio de sol é mais do que bem-vindo. Quando fui mandada para esse planeta, o que mais me atraiu foi o calor. O calor da água quentinha banhando meu corpo. O calor de um bom cobertor numa noite de inverno. O calor produzido pelo toque de uma pele em outra. O calor do sol.


- Sunny é bonito – eu disse em resposta a como ele me chamava, já que meu verdadeiro nome parecia um enigma para ele – Eu gosto do sol.

- De onde vem esse seu nome esquisito, afinal? – perguntou o humano sem tirar os olhos da estrada - Como é mesmo? Sol...

- Luz do Sol Através do Gelo – lembrei-o – Vem do antigo planeta em que vivi antes desse.

- Ouvi dizer que é bonito lá, nesse planeta dos ursos. São escultores, né?

A pergunta me pegou de surpresa. Como ele poderia saber dessas coisas?

- Como você sabe? Onde foi que você ouviu dizer?

Ele não respondeu, nem me olhou, mas vi seus olhos se estreitarem e seu maxilar se tensionar. Era como se nossa conversa tivesse tomado um rumo que não deveria. Eu quis continuá-la, entretanto, queria continuar escutando sua voz grave, que vinha do fundo da garganta, como do fundo de uma caverna de onde não se enxerga a luz. Eu já a tinha ouvido muitas vezes, aquela voz, em meu coração humano, em meus sonhos. Ela despertava as memórias de meu corpo e eu lamentei que ele não desgrudasse os olhos da estrada para me olhar, que mantivesse as mãos presas no volante. Era como se ele precisasse se segurar em algo para se manter firme. Como se pudesse desaparecer se não agarrasse aquele volante quase até o ponto de atravessá-lo.

Ele era bonito ainda, do jeito que eu o via em meus sonhos. Apesar de que agora sua expressão estivesse tão dura. Lembrei-me de meu antigo planeta, de como era bonito, mas também selvagem, ameaçador, perigoso. Pensei em como sofreria esse frágil corpo humano padecendo no magnífico gelo esculpido. Pensei nos olhos glaciais com que o belo humano ao meu lado tinha me olhado. Duas pedras de gelo cravadas no rosto que aquecia meus sonhos.

- O gelo é bonito – respondi, finalmente – mas pode machucar.

Ele então se virou para mim, só por um instante, me olhando com a testa franzida e os olhos confusos, como se eu tivesse dito algo indecifrável para muitos, mas estranhamente inteligente para ele. A sugestão de um sorriso repuxou um dos cantos de sua boca antes de ele se virar de volta para a estrada.

Eu estava gostando de observar os gestos dele. Muita coisa parecia igual. Não eram exatamente lembranças o que eu tinha, meu corpo é que se lembrava do cheiro e da textura da pele dele, de como meu corpo se encaixava ao seu tronco amplo me fazendo parecer ainda mais pequenina. Uma vez tive um sonho em que nossos amigos zombavam de como a altura dele me fazia parecer uma criança, mesmo usando saltos. Tive muitos outros sonhos, todas as noites. Almas experientes me explicaram que ele era o companheiro desse corpo que eu habito. Que quando fosse encontrado, viria para mim, pois certamente sentiria minha falta também. Eu esperei durante anos, mas ele nunca chegou.

Mais cedo naquela noite, quando ele entrou pela porta do meu quarto com a familiaridade que lhe parecia peculiar, eu estava meio adormecida. Achei que era o sonho de sempre. Demorei alguns instantes para perceber que eu estava realmente sentindo os braços dele ao meu redor, que eu estava realmente sentindo seu cheiro. Deixei-me levar como que arrastada pelo mar, totalmente sem reação. Assim que ele me pôs no carro e prendeu o cinto de segurança em torno de meu corpo, eu pude ver que ele permanecia humano, mas que tinha vindo me buscar. Sabia que devia sentir medo, mais que isso, pavor, mas só conseguia me sentir... feliz.

Ele pareceu indeciso sobre o que fazer, parecia ele mesmo assustado. Não acreditei que pudesse ser por minha causa, então compreendi que ele não deveria estar ali. Era disso que ele estava com medo, de que alguém o visse ali. Eu também tive medo, por ele e por mim, não podia conceber que o encanto daquele momento se quebrasse e alguém viesse tirá-lo dali. Não estava disposta a ficar um segundo sequer longe dele novamente. Ele deu partida no jipe e me senti aliviada, sabendo que agora teria tempo para pensar.

Eu não sabia o que dizer, então fiquei em silêncio, observando-o e tentando ter certeza de que realmente não estava sonhando. Quando finalmente me dominei e consegui canalizar o medo, a expectativa, a surpresa e a paixão que me arrebatavam, em uma voz alta o suficiente para ser ouvida, eu disse:

- Você é Kyle.

Era a coisa mais idiota que eu podia dizer, sendo que meus sentidos gritavam isso há horas, mas foi só o que eu consegui. E eu fiquei contente que ele soubesse agora que eu o tinha reconhecido.

Ele me olhou cuidadosamente, me avaliando, estudando meus movimentos, e disse:

– Sou, e quem é você?

– Luz do Sol Através do Gelo.

Ele bufou, como se esperasse uma resposta diferente e perguntou com a boca torta em uma expressão quase ofensiva, insolente:

– Como é?

– Luz do Sol...

– Sunny está bom. – Kyle me interrompeu impaciente.

Eu pensei um pouco sobre o nome para não ter que pensar em sua aspereza, tão diferente do que eu tinha esperado.

Alguns minutos depois, aqui estava eu olhando seu rosto: o maxilar quadrado, a testa proeminente, os olhos azuis duros e intensos, o nariz estava um pouco torto, como se tivesse sido quebrado e nunca posto adequadamente no lugar, a boca sempre apertada numa linha tensa.

– Você está um pouco diferente de como eu me lembro.

– E – ele me olhou curioso antes de continuar – do que é que você se lembra?

– Eu sonho sempre com você. Nos meus sonhos, seus olhos são alegres, provocadores. E você está sempre rindo.

Novamente ele me olhou, a expressão triste, o gelo dos seus olhos se derretendo só um pouquinho:

– Muita coisa aconteceu no tempo que me separa desse homem dos seus sonhos.

Era algo muito triste de se ouvir, mas eu queria saber mais. O que é que ele estava fazendo ali? Por que não tinha tido seu corpo ocupado por uma Alma que viria pacificamente ao meu encontro? Eu me sentiria da mesma forma se Kyle não fosse mais Kyle?

– O que foi que aconteceu? Nesses anos todos, quero dizer? – perguntei, certificando-me de que minha pergunta cobrisse todo o tempo que nos separava.

Ele pareceu sofrer, lutando com uma resposta e isso me causou dor. Mal sabia eu o que viria a seguir:

– Eu não pude salvar Jodi. Quando percebi já era tarde demais para ela. Vocês a ROUBARAM DE MIM!

Fiquei petrificada com essa explosão. Quem era Jodi mesmo? Por que é que ele estava todo vermelho assim, uma veia saltada na testa, os olhos cheios de lágrimas?

– Eu... eu... não quis tirar nada... de você. Jamais te faria sofrer.

Ele demorou alguns segundos para se recompor. A essas alturas eu já podia medir seu nível de tensão pelo quão fundo ele pisava no acelerador, e agora o jipe ia um pouco mais devagar. Ele continuou olhando para frente, mas balançou a cabeça pra si mesmo, mexendo-a freneticamente de um lado pro outro, como se ele mesmo não pudesse acreditar no que tinha acabado de dizer. Uma de suas grandes mãos se despregou do volante e ele passou as costas dessa mão descuidadamente sob o nariz vermelho:

– Eu sei que você não faria. Me desculpe, não quis te assustar. Você está bem?

– Tive medo...

– Não vou te fazer mal! – ele se apressou em dizer.

– Tive medo que você estivesse bravo comigo.

– Não! Olha, me perdoe. Sabe, a sua raça, eu não os odeio mais. Tanto. Sei agora que o que vocês têm é muito medo da gente. – ele fixou os olhos em mim pelo tempo mais longo que podia enquanto dirigia – Não quero que você tenha medo de mim.

Eu não tinha. Ele parecia instável, volátil como tinham me dito que eram os humanos. Mas eu não conseguia evitar, quando ele me olhava nos olhos, eu simplesmente confiava nele. Essa inquietude que me invadiu quando ele ficou nervoso estava começando a ficar clara para mim, agora que eu sabia que não conseguia ter medo dele. O que eu queria era que ele gostasse de mim. Queria poder fazer alguma coisa que o deixasse feliz, que trouxesse de volta o sorriso dos meus sonhos. Percebi que a cada minuto que se passava era mais importante pra mim que ele ficasse bem.

– Eu faria o que pudesse, sabe, pra te deixar feliz.

Ele olhou pra mim surpreso, um raio de luz atravessando o gelo que derretia em seus olhos:

– Você faria mesmo, não é? – ele abanou a cabeça novamente – Vocês podem ser mesmo umas coisinhas extraordinárias! Pelo menos alguns de vocês, imagino.

– Você conhece muitos de nós?

– Não. Conhecer, conhecer mesmo, só a Peg.

– Quem é Peg?

– A Peg é... A Peg é igualzinha a você. No começo nós tínhamos medo dela. – ele riu pela primeira vez e eu me iluminei junto com ele – Olha só, você não pode contar para ninguém que eu falei que morria de medo dela, tá? Mas é verdade. Eu achava que a odiava, mas hoje eu sei... Agora não me sinto mais assim. A Peg fez coisas extraordinárias por nós. Por mim também. Mas você também não pode dizer isso a ela, ok?

– Por quê?

– Ora... Sei lá! Eu só não quero que ela saiba que eu gosto dela, não quero que ninguém pense que eu fiquei de coração mole.

Algo se abriu dentro do meu peito sem deixar espaço para mais nada. Eu nunca tinha sentido isso e nem sabia o que era. Doía.

– Você gosta dela?

Ele olhou para mim como quem ia dizer “não foi o que acabei de falar?”, mas quando viu meu rosto entendeu o que eu realmente tinha perguntado.

– Ah, não, não! Não desse jeito. Ian ia arrebentar minha cara se fosse assim.

Eu me assustei com a imagem:

– Mas quem é esse Ian? E por que ele faria algo tão terrível assim?

Mais uma gargalhada. O gelo quase todo derretido agora.

– Calma! É só modo de dizer. Até parece que ele ia conseguir! – ele disse ainda rindo – Ian é meu irmão e ele fica todo bravinho com todo mundo porque acha que a Peg é namoradinha dele.

Eu me animei, sem perceber muito bem o tamanho da minha ambição, quando ele disse que o irmão dele, possivelmente um humano como ele, gostava de alguém como eu.

– Ian é humano? Ele é assim como você?

– Pode apostar que é! Meu irmão não é nenhuma lacraia!– ele respondeu com um nojo evidente.

Aquilo me magoou mais do que eu esperava.

– Desculpe, Sunny. Não foi isso que eu quis dizer. Eu não acho que você e a Peg sejam lacraias.

– O que você acha da gente então?

– Peg... eu não sei, mas acho que posso dizer que ela é quase uma amiga. Ela cuida de nós. Você... eu sei lá!

Ele me olhou intensamente agora, vendo algo além de mim, ao que parecia, seus gestos voltando à seriedade do começo:

– Você é linda!

Senti como se fosse feita de manteiga e estivesse muito, muito calor, mas logo em seguida me lembrei que ele tinha me chamado, aos de minha espécie, de lacraias. E percebi que não era eu quem ele achava linda.

Doeu muito outra vez. Parecia que alguém tentava abrir um guarda chuva dentro do meu peito. A imagem não é bonita, mas o que eu sentia também não era.

– Você é uma boa garota, Sunny. E eu não vou deixar que nada de mal te aconteça.

Eu acreditei nisso, mas estava inquieta mesmo assim. Senti que ele voltava a se fechar. Então não quis atrapalhar os pensamentos dele com mais perguntas. Não tinha certeza se estava pronta para ouvir as respostas. Não sabia mesmo o que dizer. Estava confusa e magoada demais para puxar uma conversa sem sentido. Contentei-me com ficar observando Kyle. Sentada de lado no banco como eu estava, eu me encolhi e deitei a cabeça. A manhã já se aproximava e eu me senti subitamente exausta, como se toda energia tivesse sido sugada de mim. Meus olhos quase se fechando ainda viram Kyle afrouxar um pouco meu cinto de segurança, fiquei mais confortável e quase beijei a mão dele que estava perto do meu pescoço. Lembrei-me a tempo de que não devia. Eu me senti afundar lentamente na inconsciência e em pouco tempo ficou escuro de novo.

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