Capítulo 2 – Perdida
She wants to
go home, but nobody's home
that's where
she lies, broken inside
With no place
to go, no place to go
To dry her
eyes broken inside
Open your
eyes
And look
outside find the reasons why
You've been
rejected
And now you
can't find, what you left behind
Be strong, be
strong now
Too many, too
many problems
Don't know
where she belongs, where she belongs
(Nobody’s Home – Avril
Lavigne)
A rua estava deserta a não ser por um choro que rompia seu silêncio. A
noite era escura e chuvosa e ela parecia apenas uma criança assustada, porém
uma barriga proeminente denunciava que aquela infância tinha sido interrompida
para dar início a outra.
Dezesseis anos e só o que ela tinha era uma mochila de roupas, um passe
de ônibus e uns trocados. Um pai desconhecido, uma mãe agressiva e negligente e
um namorado irresponsável eram toda a sua história.
Marina tinha decidido romper com todos eles e cuidar de si e de seu bebê
sozinha, dar uma guinada na vida e buscar um mundo melhor. Mas ali, sozinha num
ponto de ônibus que mal a protegia da chuva, a realidade a atingiu como se o
céu se abrisse e um imenso piano de cauda despencasse sobre ela.
Que mundo melhor ela procurava? O mundo fora de sua casa não era melhor,
era apenas o mundo sem um teto sobre sua cabeça.
Apesar disso, apesar dos pingos gelados que teimavam em lhe cair no rosto
e se misturar com suas lágrimas, ela sentia algo sobre sua cabeça sim. O “piano”.
O peso do mundo em suas costas. E esse peso a oprimia, a sufocava como uma mão
implacável em seu pescoço. A barriga não a deixava esquecer nem por um segundo
que em breve ela teria que lutar por dois mundos, não mais apenas pelo seu.
“Quando foi a última vez que comi?”
Esse foi seu último pensamento coerente antes da sucessão de clarões que
levaram à escuridão total. Quando abriu os olhos, apesar das pálpebras inchadas
de tanto chorar, e ainda sentindo como se seu corpo não lhe pertencesse, ela
viu um teto. Sim, um teto rapidamente preenchido pela figura de uma mulher de
rosto agradável com seus grandes olhos castanhos e cabelos claros.
— Boa noite, querida — a mulher disse. — Pode dormir mais um pouco se
quiser, parece que você está precisando. Fique tranquila, porque está tudo bem.
Mas Marina não conseguiu mais fechar os olhos, pois, embora uma parte
dela sentisse que podia descansar agora, a outra parte estava confusa e
assustada. “Nunca ninguém foi bom para mim.” Num rápido movimento que a deixou
tonta, ela se sentou e, de um jeito estranho, como se não tivesse se mexido, a
mulher estava agora sentada ao seu lado.
— Você desmaiou. Eu te achei e te trouxe para a minha casa. Não se
lembra?
Não, ela não se lembrava. Na verdade, até havia uns flashes de memória. Abrir os olhos por um segundo e perceber
vagamente o balançar nauseante de um carro. Seus pés bambos tentando se fixar
no chão enquanto braços a apoiavam. Mas aquilo ainda parecia muito estranho.
Quem era aquela loira e por que estava fazendo aquilo? Ela nunca tinha visto
aquela mulher na vida. Avaliou-a e decidiu que não parecia oferecer perigo, mas
como dizer com certeza?
— Pensei em te levar ao pronto-socorro, mas quis esperar você acordar
antes, já que estava recuperando a cor. Achei que talvez não precisasse
urgência e um pouco de comida resolvesse. Você já está mesmo ficando mais
rosada. Está com fome?
Antes que sua voz conseguisse dizer qualquer coisa, seu corpo assumiu o
comando e Marina balançou a cabeça afirmativamente. A mulher se levantou e
desapareceu por uns minutos. Tempo suficiente para Marina checar o local,
pensando no que podia levar dali e gerar um dinheiro. No entanto, algo dentro
dela dizia, ou gritava: “Não!”
A casa era simples e não muito grande, tinha poucos móveis, mas paredes
inteiras preenchidas de estantes recheadas de livros, filmes e cds. Era tudo
muito bonito, mas lhe parecia inútil.
“Para que tudo isso?”
Marina nunca tinha sido ensinada sobre o valor daquelas coisas e não
entendia como alguém podia guardar tanta “porcaria” em casa. Na escola, as
professoras tentaram forçá-la a ler livros, mas ela se desviava dessas
obrigações chatas com destreza. “Queria ser boa assim para desviar dos punhos
de minha mãe”, pensou ao lembrar disso. As cores das caixas dos filmes, as letras
douradas de alguns livros com capas de couro, tudo isso formava um quadro
atraente, mas ela sabia que nada daquilo devia valer muita coisa.
No entanto, na mesinha ao lado do sofá, havia um relógio e um lindo anel
dourados que não pareciam com as bugigangas baratas que se costuma ver em
banquinhas de camelô. Até mesmo os olhos destreinados de Marina podiam ver
isso. Ela esperava que seu corpo conseguisse ser suficientemente rápido para
pegá-los e sair correndo antes que a moça doida voltasse e exigisse algo em
troca do sofá que ocupava e do teto que a cobria.
Tentava reunir forças para realizar seus planos, quando o cheiro poderoso
de pão na chapa e queijo quente a intoxicou. Então foi obrigada a se render à
própria fome quando viu a maluca trazendo um copo de refrigerante para ajudá-la
a “forrar o estômago” enquanto esperava o sanduíche “mais rápido que conseguiu
preparar” ficar pronto. Minutos depois, ela sentia suas energias sendo
restauradas pela comida deliciosa que passava por sua boca, indo quase sem
mastigar para dentro do estômago vazio.
— Calma, menina. Comendo assim você vai acabar passando mal — disse a mulher.
— Não vou vomitar no seu chão bonito — respondeu Marina, em seu tom mais
irritante de quem quer mostrar que não se deve cutucar as onças com vara curta.
— Eu sei disso. Não é o problema. Se um acidente desses acontecesse
poderia ser limpo, mas não quero que você passe mal. Esperava poder aguardar
até amanhã de manhã para levá-la a um médico que pudesse dar uma olhada em
você.
“Maluca!”, pensou Marina enquanto a outra voltava a falar.
— O que fazia sozinha tão tarde da noite? Estava voltando da escola? —
ela perguntou, apontando para a mochila de Marina jogada em um canto da sala —
Você quer ligar para seus pais e avisá-los que se sentiu mal? Eles devem estar
preocupados.
— NÃO! Não precisa, minha mãe está na casa do namorado. Ele não tem
telefone.
— Nesse caso, espero que ela não se chateie de você passar a noite aqui
comigo...
— Não vou dormir com a senhora, não, dona!
— Não, meu bem, você me entendeu mal. Você fica no sofá, se não se
incomodar, pode ser?
— Bem, não sei. Não te conheço!
— Você não acha que se eu quisesse te fazer mal já teria feito enquanto
você dormia? Além disso, eu também não te conheço e estou confiando em você
dentro da minha casa. Eu até podia levar você para sua casa, mas se sua mãe não
está, não acho uma boa ideia você ficar sozinha.
“Oh, não! Para casa, não!”, decidiu. Era fácil fugir dali, dizer que
estava bem e que ia pegar um ônibus para casa quando amanhecesse. Provavelmente
até lá a mulher já teria se cansado de brincar de boazinha e ela não precisasse
nem mentir. Quem sabe, se tivesse forças, podia roubar as joias e fugir
enquanto a outra dormia. Se é que dormiria sem tentar nada. Ela só não podia ir
para casa. Não queria. Aquilo era o mais urgente.
— Desculpe, dona, tem razão. Eu nem agradeci por toda ajuda que me deu. É
muito legal da parte da senhora me deixar ficar aqui — corrigiu-se, antes que a
maluca quisesse levá-la para casa e ela tivesse que inventar uma história ainda
mais furada.
A outra apenas sorriu.
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