sábado, 6 de setembro de 2014

Entre a Luz e as Sombras Capítulo 4

Capítulo 4 – Dividida

There was truth
There was consequence
Against you, a weak defense
Then there's me, I'm seventeen
Looking for a fight
All my life
I was never there
Just a ghost
Running scared
Here our dreams aren't made
They're won
Lost in the city of angels
Down in the comfort of strangers
I found myself in the fire burnt hills
In the land of a billion lights
(City of Angels – 30 Seconds to Mars)

Depois de alimentar Marina e certificar-se de que ela estava confortável, Clara foi dormir. Algo dentro dela dizia que era preciso deixar as revoluções que aconteciam naquele jovem coração acontecerem longe de seus olhos.
E ela fez bem, pois seu próprio coração teria se partido ao ver que, assim que ficou sozinha, Marina pousou a mão silenciosa sobre a mesinha ao lado do sofá e roubou o relógio e o anel que eram as lembranças materiais mais preciosas que Clara tinha da mãe.
Marina colocou os objetos dentro de sua mochila e pensou em ir até a cozinha para pegar algo para comer no dia seguinte. Foi aí que o óbvio a atacou como um fantasma que espreitava na escuridão. Tudo bem, ela podia fugir. Seu corpo forte e jovem já estava restaurado à sua energia costumeira. Depois de comer e descansar um pouco, ela poderia facilmente andar ou mesmo correr, se necessário. Mas ir para onde?
Com o relógio e o anel, ela poderia conseguir algum dinheiro e manter-se por certo tempo. O quanto ela não sabia, porém aqueles objetos pareciam ser capazes de lhe comprar uns dias de paz. Mas e depois?
Nem mesmo há poucas horas, desesperada e chorando diante do ponto de ônibus, ela tinha um plano. Menos ainda agora, que estava racional o suficiente para se lembrar que não podia voltar para casa e que não tinha outro lugar para ir.
A voz da moça, Clara, ecoou em sua mente: “Você não acha que se eu quisesse te fazer mal já não teria feito?”. Sim, fazia sentido. E, pensando bem, aquela moça, que não parecia ser muito mais velha ou muito mais forte do que ela, não parecia nada ameaçadora. Vai ver que era só uma pessoa legal. Existia gente assim, não existia?
Marina não tinha certeza. Nunca tinha conhecido ninguém que fizesse nada por ela sem esperar algo em troca. Mas essa Clara parecia feita de outro barro. Um tipo diferente de gente do que Marina estava acostumada. Talvez fossem os olhos bondosos dela, ou o carinho com que lhe preparou um lanche e uma cama improvisada no sofá... Ou ainda podia ser a voz baixinha que sussurrava cada vez mais insistentemente no fundo de sua cabeça, mas que ela estava apenas começando a ouvir. Fosse o que fosse, ela sentia que podia confiar na moça.
De repente, os objetos roubados pareceram pesar uma tonelada e um remorso profundo a invadiu. Ela enfiou a mão dentro da mochila apertada contra o corpo e tirou dela as joias que devolveu ao seu lugar de origem. Foi um gesto quase mecânico, sem pensar.
Quando viu o dourado reluzente e tentador das coisas que acabara de abandonar, porém, sentiu-se estranha. O que estava fazendo? Uma pessoa que trazia uma desconhecida para dentro de casa, e ainda a deixava sozinha com seus objetos de valor, merecia ser roubada, não é?
“Veja por outro lado”, algo se pronunciou dentro dela. “Olhe novamente”. Que espécie de pessoa acha uma garota grávida e a leva para dentro de sua casa, confiando tudo o que tinha e até sua própria segurança à presença de uma estranha? Era mais ou menos a mesma pergunta, mas a resposta veio diferente agora: “uma pessoa boa em que se pode confiar”.
 No entanto, como confiar dessa maneira em alguém desconhecido, sendo que ela não tinha aprendido sequer a confiar na própria mãe?
Ela tinha boas lembranças, é claro. Mas eram apenas isso: coisas do passado. Sua mãe não tinha ficado sóbria tempo o suficiente para construir uma relação de carinho e confiança com a filha. E era difícil demais encontrar a mulher de suas longínquas lembranças de infância naquele rosto consumido pelo vício.
A mãe que ela tinha conhecido durante boa parte de sua vida tinha olhos vazios e baços quando não estavam ávidos pela droga. Aqueles olhos nunca tinham sido para ela. Nunca tinham lhe demonstrado carinho, solidariedade ou compreensão. Nunca a tinham olhado com orgulho nem com a expectativa de algo grandioso como Marina via nos olhos das mães de suas amigas. Ela própria já sentia isso por seu bebezinho. Mesmo sem conhecê-lo, já queria o melhor para ele, já se sentia capaz de virar o mundo do avesso para protegê-lo.
Pensar nisso fazia com que ela sentisse ainda mais revolta em relação ao comportamento da mulher que a gerou. Ela sabia que, em algum momento, sua mãe já tinha sentido esse amor avassalador. Não era possível que não tivesse. Mas em algum ponto do caminho, ela foi preterida. Apenas uma menininha deixada para trás por uma longa viagem sem volta. Em algum minuto congelado no tempo, insignificante em sua duração, mas permanente em seus efeitos, sua mãe tinha dado o passo que a levou para outros caminhos, para longe de sua filha.
Marina quase podia enxergar um caminho bifurcando-se diante de si agora, e empalidecia ao pensar que neste único instante, nestes poucos minutos que separavam o sim do não, ela podia estar prestes a decidir seu destino e o de seu filho. Seria muito mais fácil se houvesse algum tipo de alarme que nos avisasse quando momentos desse tipo chegassem. Alguém que nos dissesse: “Dê o seu melhor. Considere tudo com cuidado, porque este instante que você está vivendo agora pode definir seu destino. Então pense bem!”. Mas não havia coisas assim. Na sua experiência, não havia bússolas para os caminhos da vida. Que pena!
Marina deixou-se ficar no sofá, imersa em seus pensamentos. Olhou mais uma vez em volta, absorvendo os detalhes da casa que era muito diferente da sua.
Para começar, era limpa. E tinha cheiro de comida caseira em vez de cigarro, sexo e sujeira. Clara também tinha um cheiro gostoso de banho tomado e sua pele parecia limpa e pura, intocada pela podridão de algum vício. Não havia homens assustadores e repelentes saindo do quarto dela ou rondando a sala com olhares cobiçosos.
Casa para Marina nunca tinha sido sinônimo de segurança ou acolhimento. Casa sempre fora um lugar para se ir quando não se tinha a escola, a rua ou a casa de amigos ou vizinhos simpáticos para se esconder. Um lugar para se ficar discretamente, evitando ao máximo o contato com os outros, enquanto esperava outro dia amanhecer.
Mas aquela casa era diferente. Aquele era um lar. Era inevitável não se sentir segura ali, impossível não se sentir confortável.
E havia Clara. No início, ela teve medo e, mesmo agora, não sabia se podia descartar esse sentimento. Gentileza e cuidado não faziam parte de seu cotidiano e aquela parecia uma mulher um tantinho insana por fazer aquelas coisas por uma estranha. Mas, independentemente de suas intenções, aquela que a acolhera era uma pessoa de quem se tinha vontade de ficar perto. Alguém com gestos firmes, pele imaculada e olhos límpidos. Alguém com quem se podia ter uma conversa de verdade sem se ter dúvida de que ela estivesse sóbria e senhora de sua própria razão. Não era alguém que precisasse ser evitada como os “amigos” de sua mãe ou ela própria.
Clara tinha modos educados e parecia tão segura de si, tão confiante em suas decisões, que Marina chegava a sentir inveja. Será que um dia ela poderia ser assim também? Esperava que sim. Mas agora ela se sentia apenas uma menina assustada diante de uma encruzilhada.


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