sábado, 13 de dezembro de 2014

Capítulo 11 Entre a Luz e as Sombras

Capítulo 11 – Paty

Friends will be friends
When you're in need of love
They give care and attention
Friends will be friends
When you're through with life
And all hope is lost
Hold out your hand
Cos friends will be friends right till the end
(Friends Will Be Friends – Queen)


— Não sei por que não venho aqui mais vezes. É bem melhor que a barulheira da minha casa. Ah, já sei! É porque você não me convida! — queixa-se Paty, tentando bancar a irônica.
Lares são muito pessoais, guardam muitos segredos sobre nós, por isso não convido ninguém para vir até o meu se eu puder evitar. Porém, há um furacão de cachos rebeldes parado na porta de meu apartamento, exigindo passagem direta para entrar de vez em minha vida.
Dê logo uma enxada a ela para cavar mais um buraco no seu peito quando precisar deixá-la, reclama inutilmente meu lado são.
Passei o resto da noite passada em observação no hospital e Paty ficou comigo. Depois, assim que fui liberada, fomos até a delegacia para que eu prestasse depoimento. Ou para que, mais uma vez, eu mentisse deslavadamente, já que disse a Paty, Teo e aos policiais que desmaiei e não vi nada até acordar e ver Teo machucado e Paty correndo ao meu encontro.
Bem, o que eu ia dizer? Não acho que a polícia consideraria compreensível quando eu explicasse que estou tentando proteger o pouco que sei de meu agressor, porque, por alguns segundos, pude sentir o que ele sentia e agora estou tomada por uma necessidade inexplicável de compreendê-lo, traindo meu instinto de proteger minha própria vida. Definitivamente, eles achariam que estou louca.
Definitivamente, você está louca!
“Hum.”
De qualquer forma, não tenho muito a dizer, exceto talvez por “um vulto preto me bateu na cabeça e parecia pretender me estrangular, mas, em vez disso, ele acariciou meu rosto e, depois de bater em meu amigo, ainda deu tchauzinho”.
É, não é uma história muito verossímil mesmo!
“Eu não disse?”
Não se gabe. Você sabe que está jogando um jogo perigoso escondendo coisas da polícia! Em todo caso, não é como se você fosse mesmo a Miss Honestidade.
Bufo internamente e mando minha mente calar a boca enquanto me foco novamente em Paty, parada na porta de minha casa ostentando um brilhante, porém exausto, sorriso de covinhas. Depois de tudo o que fez por mim desde a madrugada de ontem e de ficar sem dormir me vigiando, ela se convidou para passar a noite aqui comigo e não tive forças para recusar. Não que ela fosse levar a minha recusa a sério, de qualquer jeito.
Ela olha em volta e deixa a bolsa desabar no chão, como se já não aguentasse mais segurá-la.
— Está de mudança? — brinco quando vejo o tamanho da mala que ela trouxe para passar a noite em meu apartamento. Uma noite.
— Olha só, Clarinha, eu não vou a lugar nenhum sem estar preparada para tudo.
— Preparada para o que, Paty? É só um pouco de TV e cama. Não vamos pegar um avião para o Havaí!
— Humm, seria bom! Só que eu me contento com uma pizza e uma comédia romântica por hoje. Estou cansada demais para o Havaí. Mas, sério, não sei por que você nunca tinha me convidado antes pra vir aqui. Seu apê é totalmente fofo! — diz ela, dando uma ênfase excessivamente juvenil à palavra “totalmente”. — Eu adoro morar com minha avó, mas todo dia ter parente em casa visitando é um saco.
Paty se mudou há para a casa da avó, porque era mais perto do trabalho e porque lá ela não tinha que dividir o quarto com a irmã. Além disso, seus pais gostaram da ideia de que a avó tivesse uma companhia constante para cuidar dela, o que era uma ilusão, já que Dona Benedita era uma velhinha espevitada que adorava cuidar dos outros e só aceitaria que a situação se invertesse no dia em que não conseguisse mais levantar da cama.
Ao longo dos anos, fui desenvolvendo certas... habilidades, por assim dizer. Uma delas foi a capacidade de perceber que, assim como os anjos, os humanos normais se dividem em grupos, de acordo com o que eu chamo de propensões. Às vezes eles usam essas propensões para o bem maior, mas na maior parte das vezes usam-nas apenas para determinar suas escolhas pessoais e profissionais. Há cuidadores, conselheiros, guardiões, professores, visionários, criadores... Dezenas de aptidões dormentes que eles podem desenvolver, combinar ou mesmo simplesmente ignorar, como alguns fazem. Mas Paty não. Paty é uma cuidadora, assim como sua avó. E por isso ela está aqui agora vasculhando minhas coisas e me deixando desconfortável.
— Quanta coisa bonitinha você tem. Onde comprou isso? — diz ela, segurando uma velha estátua de anjo que eu guardava há anos
— Bem, eu...
Era da minha mãe. Por favor, por favor, não quebre.
— Gracinha! — diz ela soltando o anjo no sofá de qualquer jeito, enquanto eu me apresso em devolvê-lo ao lugar. — E essa quantidade de livros? Quando você tem tempo para ler tudo isso?
— Quando eu...
— Caramba, Branquinha! Que cozinha mais gostosa!
A concentração de uma criança de três anos, resmunga a mente mal-humorada.
“Ainda bem”, respondo aliviada.
— Ei, agora, olhando para a sua geladeira, sabe o que eu percebi? A da minha avó é cheia de desenhos dos meus priminhos e fotos por toda parte. Na sua casa não tem fotos.
Eu tenho fotos. Dezenas delas. Fotos do Caio. Mas não as deixo exatamente à mostra como se precisasse de um lembrete do buraco dentro de mim. Perco o foco por um momento e, como se lesse meus pensamentos cheios de saudade, Paty diz:
— Oh, meu Deus, me desculpe. Como eu sou idiota!
— O quê? — pergunto, voltando à realidade como se tivesse sido tirada de dentro da água morna de uma banheira reconfortante, direto para o frio da noite.
— Sou uma insensível mesmo. Você já me disse que seus pais morreram e que você não tem parentes vivos. Acho que você não tem fotos pela casa porque... — ela para, incerta sobre como continuar a frase sem me deixar triste.
— Porque fotos me deixam com saudade — respondo.
Além do mais, todos iam adorar as fotos de seus pais com roupas dos anos 50 e 60!
— Ei – digo, acariciando o braço dela —, não precisa se desculpar. Não tem nada de mais no que você disse. Mas, mudando de assunto, a qual filme você quer assistir?
Paty sorri em antecipação e começamos a garimpar entre minhas dezenas de DVDs, em busca de algo que tire nossas mentes de pensamentos tristes, tensos e preocupantes. Finalmente, nos decidimos pela história que nós duas já assistimos “milhões” de vezes sobre uma garota de aparência e hábitos superficiais, mas que se mostra a mais tolerante, diligente e meiga das criaturas. Não importa quantas vezes eu assista a esse filme, sempre me tomo de ternura pela protagonista: tão ingênua, tão pura e delicada em seus sentimentos.
Paty também adora, foi um dos primeiros assuntos sobre o qual conversamos quando tínhamos acabado de nos conhecer. O filme estava passando na televisão enquanto fazíamos a limpeza do bar e nós, a toda hora, flagrávamos uma à outra esquecendo o serviço e prestando atenção no filme. Agora, já no finalzinho, ela estava sorrindo como naquele dia.
— Obrigada — digo, porque não consigo controlar a onda de amor que me afoga quando olho para ela e percebo o quanto senti falta da expressão descontraída que vejo em seu rosto neste momento.
— Pelo quê? — pergunta ela, desgrudando os olhos do filme e me olhando surpresa.
— Por cuidar de mim ontem. E por estar aqui cuidando de mim de novo. Faz muito tempo que ninguém faz isso.
— Por quê? Você tem costume de ser nocauteada por estranhos com frequência? — rebate ela, tentando provocar uma risada para desviar o assunto. Paty não fica muito confortável com momentos excessivamente ternos, ao que parece.
— Ah, sim. O tempo todo. Mas, como eu disse, nem sempre tenho uma amiga para dormir comigo no hospital e tudo o mais.
— Para, Branquinha. Não me olha com esses olhos de cachorro, senão eu choro — diz ela, tampando meus olhos com a mão e empurrando meu rosto, me forçando a olhar para o outro lado. Dessa vez nós duas caímos na risada e eu acho que o momento já acabou, mas é ela quem o retoma. — Eu fiquei doida de preocupação quando te vi caída no chão, sabia? Fiquei tão cega que nem reparei que o Teo estava lá até ele chegar perto da gente. Quer dizer, eu o vi lá, porque é difícil não ver aquilo tudo, mas nem processei a informação.
— Eu sei. Desculpe por isso.
— Desculpar você!? Você é mesmo uma esquisita. Sabe quem eu culpo por isso? O Sacana Samuel! Eu fui lá hoje, antes de vir para cá. Queria cobrar umas providências dele.
— Você foi lá? Por que não me contou?
— Não queria estragar a nossa noite deixando você preocupada.
— Por quê? Está tudo bem por lá?
— Tudo bem? Claro que não, né? Você sabe o que acontece quando nós duas estamos de folga ao mesmo tempo: a imbecil da Lara é convocada.
Lara era uma garota que cobria nossas folgas ou vinha em noites de muito movimento. Paty a odiava e, verdade seja dita, era fácil entender por quê.
— Hoje a noite é fraca, Paty. A Lara dá conta.
— A Lara não dá conta de contar até 10 e depois fazer isso de trás para frente. Quando chegarmos lá amanhã, vai estar tudo uma bagunça e a gente é que vai ter que se virar pra arrumar. Mas fazer o que, né? Eu amo aquele bar, mas infelizmente não mando nele. E não posso fazer nada a respeito do fato de que o único motivo para aquela anta estar lá é porque ela está disposta a dar ao Samuel coisas que nem eu nem você estamos.
— Paty!
— O quê? Não estou mentindo, estou?
— Ele só está dando uma chance de trabalho a ela. Quando ele faz algo legal você critica!
— Dando uma chance a ela de ficar perto demais da caixa registradora. Sorte dele que ela não sabe contar se as notas estiverem trocadas!
— Ah, Paty, por favor. Eu não me sinto bem quando você faz mau juízo das pessoas desse jeito.
— E eu não entendo você, sabe? A garota fala mal de você pra mim, fala mal de mim pra você, morre de inveja de nós duas e te trata mal quando eu não estou perto, que eu sei. E não adianta mentir, porque o Jefferson da cozinha me contou. Além do mais, eu tenho certeza que o dinheiro que sumiu misteriosamente da sua bolsa noutro dia foi parar na bolsa dela e, com tudo isso, você fica aí defendendo a biscate!
— É que a gente não a conhece bem. Quem sabe os motivos que a levaram a ser assim?
— Ai, Santa Clara! Às vezes é difícil não perder a paciência com você. Eu acho fofa essa sua ladainha de tolerância e amor ao próximo, mas aquelas de nós que não abraçaram a santidade nem nada precisam de uma amiga com quem falar mal dos outros. Quer fazer o favor de fazer seu papel de vez em quando? Depois você pode se punir fazendo jejum ou algo assim. Pelo menos já aproveita e controla o peso.
— Você pode ficar amiga da Lara e se juntar a ela pra falar mal de mim. Que tal? Já está até insinuando que estou acima do peso!
— Nem brinca com isso, Branquinha. Prefiro ficar sem as minhas folgas a ter que conviver mais com ela do que já sou obrigada. Sorte que vai ser por pouco tempo.
E é só quando ela diz isso que eu processo realmente a informação que ela me deu há pouco, sobre o motivo de não ter me contado que tinha falado com Samuel, ou seja, para não me deixar preocupada.
— Paty, qual é o problema de verdade? Por que você achou que me contar sobre sua conversa com Samuel estragaria nossa noite?
— Não, é que... — então ela se interrompe. Paty não é muito boa com mentiras e enrolações. Ela diz que quando a olho com meus “olhos de cachorro” a obrigo a dizer a verdade.
— Paty — incentivo firme e ela suspira pesadamente.
— Bom, você vai saber de qualquer maneira. E é até bom, porque assim já começa a procurar outro lugar também.
— Como assim?
—Você sabe que eu fui lá pra exigir um segurança e mais iluminação no estacionamento e tal... Mas o caso é que o Samuel disse que está quebrado, que mal tem dinheiro pra manter o bar aberto por mais uns meses. Ele acabou me contando porque queria que eu parasse de ficar falando mal dele e de como ele administra o bar por aí. Ele quer ver se consegue vender.
— Coitado!
— O problema é que ele andou perdendo muito dinheiro no jogo. Mas, segundo ele, tem um gringo meio interessado no negócio. Alguém que deve ser uma boa bisca igual a ele, como diz minha avó, porque eles se conheceram jogando. O caso é que se esse cara topar, compra o On the Rocks de “porteira fechada”, ou seja, com tudo dentro, inclusive os funcionários, se a gente quiser ficar. Caso contrário, ele não sabe em que condições vai fazer a venda e a coisa toda pode virar uma balada sertaneja ou um baile funk. E, amiga, nada contra e tal, mas eu não fico bem de chapéu e tendo a passar mal quando vejo piercing no umbigo, só estou dizendo.
— Meu Deus, Paty. Essas são péssimas notícias! Eu estava tão feliz em trabalhar lá com você e o resto do pessoal.
— Menos a Lara — diz Paty, irredutível em suas hostilidades. — Pois é, Branquinha, eu sei. O pior é que eu preciso do dinheiro pra pagar o curso de enfermagem que quero fazer.
— E eu preciso do dinheiro para viver.
Não é bem verdade, já que ao longo de tanto tempo trabalhando e levando uma vida simples eu tinha construído uma boa poupança, mas mesmo assim não posso me dar ao luxo de ficar muito tempo sem trabalhar. Além do mais, eu não sei como estarão Marina e Caio. E se eles precisarem desse dinheiro? Eu não hesitaria em dar a eles, mesmo que ficasse completamente zerada. Além disso, meus amigos que trabalham lá ficariam em maus lençóis por um tempo. Então talvez eu precisasse do dinheiro para eles.
— Olha — diz Paty, tentando me acalmar —, não vamos nos preocupar demais antes da hora. Também não é como se nosso emprego fosse o mais difícil de conseguir. A gente consegue outro logo. E se você precisar, pode ficar comigo e com a vovó.
— Seria ótimo — digo, porque seria mesmo. Se ao menos eu me permitisse algo assim... Se não fosse perigoso demais para meus sentimentos ter uma família de novo, eu adoraria. E é justamente por isso que seria tão perigoso.
Juízo, Clara!
“Hunf!”
O interfone toca nos tirando de nossos pensamentos.
— Hora de sair de nosso modo-alerta-alternativas-de-sobrevivência. A pizza chegou. Deixa que eu desço pra pegar — diz Paty, pulando do sofá com a mesma energia de suas noites bem dormidas. Depois ela se volta para mim e segura meu rosto entre as mãos. — Fica calma, Branquinha. Deixa estar que cuido de você.

E, por incrível e irresponsável que pareça, decido deixar, porque é o que sinto que devo fazer neste momento.

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