Capítulo 11 – Paty
Friends will
be friends
When you're
in need of love
They give
care and attention
Friends will
be friends
When you're
through with life
And all hope
is lost
Hold out your
hand
Cos friends
will be friends right till the end
(Friends Will Be Friends – Queen)
— Não sei por que não venho aqui mais vezes. É bem melhor que a
barulheira da minha casa. Ah, já sei! É porque você não me convida! — queixa-se
Paty, tentando bancar a irônica.
Lares são muito pessoais, guardam muitos segredos sobre nós, por isso não
convido ninguém para vir até o meu se eu puder evitar. Porém, há um furacão de
cachos rebeldes parado na porta de meu apartamento, exigindo passagem direta
para entrar de vez em minha vida.
Dê logo uma enxada a ela para cavar
mais um buraco no seu peito quando precisar deixá-la, reclama inutilmente
meu lado são.
Passei o resto da noite passada em observação no hospital e Paty ficou
comigo. Depois, assim que fui liberada, fomos até a delegacia para que eu
prestasse depoimento. Ou para que, mais uma vez, eu mentisse deslavadamente, já
que disse a Paty, Teo e aos policiais que desmaiei e não vi nada até acordar e
ver Teo machucado e Paty correndo ao meu encontro.
Bem, o que eu ia dizer? Não acho que a polícia consideraria compreensível
quando eu explicasse que estou tentando proteger o pouco que sei de meu
agressor, porque, por alguns segundos, pude sentir o que ele sentia e agora
estou tomada por uma necessidade inexplicável de compreendê-lo, traindo meu
instinto de proteger minha própria vida. Definitivamente, eles achariam que estou
louca.
Definitivamente, você está louca!
“Hum.”
De qualquer forma, não tenho muito a dizer, exceto talvez por “um vulto
preto me bateu na cabeça e parecia pretender me estrangular, mas, em vez disso,
ele acariciou meu rosto e, depois de bater em meu amigo, ainda deu tchauzinho”.
É, não é uma história muito
verossímil mesmo!
“Eu não disse?”
Não se gabe. Você sabe que está
jogando um jogo perigoso escondendo coisas da polícia! Em todo caso, não é como
se você fosse mesmo a Miss Honestidade.
Bufo internamente e mando minha mente calar a boca enquanto me foco
novamente em Paty, parada na porta de minha casa ostentando um brilhante, porém
exausto, sorriso de covinhas. Depois de tudo o que fez por mim desde a
madrugada de ontem e de ficar sem dormir me vigiando, ela se convidou para
passar a noite aqui comigo e não tive forças para recusar. Não que ela fosse
levar a minha recusa a sério, de qualquer jeito.
Ela olha em volta e deixa a bolsa desabar no chão, como se já não
aguentasse mais segurá-la.
— Está de mudança? — brinco quando vejo o tamanho da mala que ela trouxe
para passar a noite em meu apartamento. Uma noite.
— Olha só, Clarinha, eu não vou a lugar nenhum sem estar preparada para
tudo.
— Preparada para o que, Paty? É só um pouco de TV e cama. Não vamos pegar
um avião para o Havaí!
— Humm, seria bom! Só que eu me contento com uma pizza e uma comédia
romântica por hoje. Estou cansada demais para o Havaí. Mas, sério, não sei por
que você nunca tinha me convidado antes pra vir aqui. Seu apê é totalmente fofo!
— diz ela, dando uma ênfase excessivamente juvenil à palavra “totalmente”. — Eu
adoro morar com minha avó, mas todo dia ter parente em casa visitando é um
saco.
Paty se mudou há para a casa da avó, porque era mais perto do trabalho e
porque lá ela não tinha que dividir o quarto com a irmã. Além disso, seus pais
gostaram da ideia de que a avó tivesse uma companhia constante para cuidar
dela, o que era uma ilusão, já que Dona Benedita era uma velhinha espevitada
que adorava cuidar dos outros e só aceitaria que a situação se invertesse no
dia em que não conseguisse mais levantar da cama.
Ao longo dos anos, fui desenvolvendo certas... habilidades, por assim
dizer. Uma delas foi a capacidade de perceber que, assim como os anjos, os
humanos normais se dividem em grupos, de acordo com o que eu chamo de
propensões. Às vezes eles usam essas propensões para o bem maior, mas na maior
parte das vezes usam-nas apenas para determinar suas escolhas pessoais e
profissionais. Há cuidadores, conselheiros, guardiões, professores,
visionários, criadores... Dezenas de aptidões dormentes que eles podem
desenvolver, combinar ou mesmo simplesmente ignorar, como alguns fazem. Mas
Paty não. Paty é uma cuidadora, assim como sua avó. E por isso ela está aqui
agora vasculhando minhas coisas e me deixando desconfortável.
— Quanta coisa bonitinha você tem. Onde comprou isso? — diz ela,
segurando uma velha estátua de anjo que eu guardava há anos
— Bem, eu...
Era da minha mãe. Por favor, por
favor, não quebre.
— Gracinha! — diz ela soltando o anjo no sofá de qualquer jeito, enquanto
eu me apresso em devolvê-lo ao lugar. — E essa quantidade de livros? Quando
você tem tempo para ler tudo isso?
— Quando eu...
— Caramba, Branquinha! Que cozinha mais gostosa!
A concentração de uma criança de
três anos, resmunga a mente mal-humorada.
“Ainda bem”, respondo aliviada.
— Ei, agora, olhando para a sua geladeira, sabe o que eu percebi? A da
minha avó é cheia de desenhos dos meus priminhos e fotos por toda parte. Na sua
casa não tem fotos.
Eu tenho fotos. Dezenas delas. Fotos do Caio. Mas não as deixo exatamente
à mostra como se precisasse de um lembrete do buraco dentro de mim. Perco o
foco por um momento e, como se lesse meus pensamentos cheios de saudade, Paty
diz:
— Oh, meu Deus, me desculpe. Como eu sou idiota!
— O quê? — pergunto, voltando à realidade como se tivesse sido tirada de
dentro da água morna de uma banheira reconfortante, direto para o frio da
noite.
— Sou uma insensível mesmo. Você já me disse que seus pais morreram e que
você não tem parentes vivos. Acho que você não tem fotos pela casa porque... —
ela para, incerta sobre como continuar a frase sem me deixar triste.
— Porque fotos me deixam com saudade — respondo.
Além do mais, todos iam adorar as
fotos de seus pais com roupas dos anos 50 e 60!
— Ei – digo, acariciando o braço dela —, não precisa se desculpar. Não
tem nada de mais no que você disse. Mas, mudando de assunto, a qual filme você
quer assistir?
Paty sorri em antecipação e começamos a garimpar entre minhas dezenas de
DVDs, em busca de algo que tire nossas mentes de pensamentos tristes, tensos e
preocupantes. Finalmente, nos decidimos pela história que nós duas já
assistimos “milhões” de vezes sobre uma garota de aparência e hábitos
superficiais, mas que se mostra a mais tolerante, diligente e meiga das
criaturas. Não importa quantas vezes eu assista a esse filme, sempre me tomo de
ternura pela protagonista: tão ingênua, tão pura e delicada em seus
sentimentos.
Paty também adora, foi um dos primeiros assuntos sobre o qual conversamos
quando tínhamos acabado de nos conhecer. O filme estava passando na televisão
enquanto fazíamos a limpeza do bar e nós, a toda hora, flagrávamos uma à outra
esquecendo o serviço e prestando atenção no filme. Agora, já no finalzinho, ela
estava sorrindo como naquele dia.
— Obrigada — digo, porque não consigo controlar a onda de amor que me
afoga quando olho para ela e percebo o quanto senti falta da expressão descontraída
que vejo em seu rosto neste momento.
— Pelo quê? — pergunta ela, desgrudando os olhos do filme e me olhando
surpresa.
— Por cuidar de mim ontem. E por estar aqui cuidando de mim de novo. Faz
muito tempo que ninguém faz isso.
— Por quê? Você tem costume de ser nocauteada por estranhos com
frequência? — rebate ela, tentando provocar uma risada para desviar o assunto.
Paty não fica muito confortável com momentos excessivamente ternos, ao que
parece.
— Ah, sim. O tempo todo. Mas, como eu disse, nem sempre tenho uma amiga
para dormir comigo no hospital e tudo o mais.
— Para, Branquinha. Não me olha com esses olhos de cachorro, senão eu
choro — diz ela, tampando meus olhos com a mão e empurrando meu rosto, me
forçando a olhar para o outro lado. Dessa vez nós duas caímos na risada e eu
acho que o momento já acabou, mas é ela quem o retoma. — Eu fiquei doida de
preocupação quando te vi caída no chão, sabia? Fiquei tão cega que nem reparei
que o Teo estava lá até ele chegar perto da gente. Quer dizer, eu o vi lá,
porque é difícil não ver aquilo tudo, mas nem processei a informação.
— Eu sei. Desculpe por isso.
— Desculpar você!? Você é mesmo uma esquisita. Sabe quem eu culpo por
isso? O Sacana Samuel! Eu fui lá hoje, antes de vir para cá. Queria cobrar umas
providências dele.
— Você foi lá? Por que não me contou?
— Não queria estragar a nossa noite deixando você preocupada.
— Por quê? Está tudo bem por lá?
— Tudo bem? Claro que não, né? Você sabe o que acontece quando nós duas
estamos de folga ao mesmo tempo: a imbecil da Lara é convocada.
Lara era uma garota que cobria nossas folgas ou vinha em noites de muito
movimento. Paty a odiava e, verdade seja dita, era fácil entender por quê.
— Hoje a noite é fraca, Paty. A Lara dá conta.
— A Lara não dá conta de contar até 10 e depois fazer isso de trás para
frente. Quando chegarmos lá amanhã, vai estar tudo uma bagunça e a gente é que
vai ter que se virar pra arrumar. Mas fazer o que, né? Eu amo aquele bar, mas
infelizmente não mando nele. E não posso fazer nada a respeito do fato de que o
único motivo para aquela anta estar lá é porque ela está disposta a dar ao
Samuel coisas que nem eu nem você estamos.
— Paty!
— O quê? Não estou mentindo, estou?
— Ele só está dando uma chance de trabalho a ela. Quando ele faz algo
legal você critica!
— Dando uma chance a ela de ficar perto demais da caixa registradora. Sorte
dele que ela não sabe contar se as notas estiverem trocadas!
— Ah, Paty, por favor. Eu não me sinto bem quando você faz mau juízo das
pessoas desse jeito.
— E eu não entendo você, sabe? A garota fala mal de você pra mim, fala
mal de mim pra você, morre de inveja de nós duas e te trata mal quando eu não
estou perto, que eu sei. E não adianta mentir, porque o Jefferson da cozinha me
contou. Além do mais, eu tenho certeza que o dinheiro que sumiu misteriosamente da sua bolsa noutro dia
foi parar na bolsa dela e, com tudo isso, você fica aí defendendo a biscate!
— É que a gente não a conhece bem. Quem sabe os motivos que a levaram a
ser assim?
— Ai, Santa Clara! Às vezes é difícil não perder a paciência com você. Eu
acho fofa essa sua ladainha de tolerância e amor ao próximo, mas aquelas de nós
que não abraçaram a santidade nem nada precisam de uma amiga com quem falar mal
dos outros. Quer fazer o favor de fazer seu papel de vez em quando? Depois você
pode se punir fazendo jejum ou algo assim. Pelo menos já aproveita e controla o
peso.
— Você pode ficar amiga da Lara e se juntar a ela pra falar mal de mim.
Que tal? Já está até insinuando que estou acima do peso!
— Nem brinca com isso, Branquinha. Prefiro ficar sem as minhas folgas a
ter que conviver mais com ela do que já sou obrigada. Sorte que vai ser por
pouco tempo.
E é só quando ela diz isso que eu processo realmente a informação que ela
me deu há pouco, sobre o motivo de não ter me contado que tinha falado com
Samuel, ou seja, para não me deixar preocupada.
— Paty, qual é o problema de verdade? Por que você achou que me contar
sobre sua conversa com Samuel estragaria nossa noite?
— Não, é que... — então ela se interrompe. Paty não é muito boa com
mentiras e enrolações. Ela diz que quando a olho com meus “olhos de cachorro” a
obrigo a dizer a verdade.
— Paty — incentivo firme e ela suspira pesadamente.
— Bom, você vai saber de qualquer maneira. E é até bom, porque assim já
começa a procurar outro lugar também.
— Como assim?
—Você sabe que eu fui lá pra exigir um segurança e mais iluminação no
estacionamento e tal... Mas o caso é que o Samuel disse que está quebrado, que
mal tem dinheiro pra manter o bar aberto por mais uns meses. Ele acabou me
contando porque queria que eu parasse de ficar falando mal dele e de como ele
administra o bar por aí. Ele quer ver se consegue vender.
— Coitado!
— O problema é que ele andou perdendo muito dinheiro no jogo. Mas,
segundo ele, tem um gringo meio interessado no negócio. Alguém que deve ser uma
boa bisca igual a ele, como diz minha avó, porque eles se conheceram jogando. O
caso é que se esse cara topar, compra o On the Rocks de “porteira fechada”, ou
seja, com tudo dentro, inclusive os funcionários, se a gente quiser ficar. Caso
contrário, ele não sabe em que condições vai fazer a venda e a coisa toda pode
virar uma balada sertaneja ou um baile funk. E, amiga, nada contra e tal, mas
eu não fico bem de chapéu e tendo a passar mal quando vejo piercing no umbigo,
só estou dizendo.
— Meu Deus, Paty. Essas são péssimas notícias! Eu estava tão feliz em
trabalhar lá com você e o resto do pessoal.
— Menos a Lara — diz Paty, irredutível em suas hostilidades. — Pois é, Branquinha,
eu sei. O pior é que eu preciso do dinheiro pra pagar o curso de enfermagem que
quero fazer.
— E eu preciso do dinheiro para viver.
Não é bem verdade, já que ao longo de tanto tempo trabalhando e levando
uma vida simples eu tinha construído uma boa poupança, mas mesmo assim não
posso me dar ao luxo de ficar muito tempo sem trabalhar. Além do mais, eu não
sei como estarão Marina e Caio. E se eles precisarem desse dinheiro? Eu não
hesitaria em dar a eles, mesmo que ficasse completamente zerada. Além disso,
meus amigos que trabalham lá ficariam em maus lençóis por um tempo. Então
talvez eu precisasse do dinheiro para eles.
— Olha — diz Paty, tentando me acalmar —, não vamos nos preocupar demais
antes da hora. Também não é como se nosso emprego fosse o mais difícil de
conseguir. A gente consegue outro logo. E se você precisar, pode ficar comigo e
com a vovó.
— Seria ótimo — digo, porque seria mesmo. Se ao menos eu me permitisse
algo assim... Se não fosse perigoso demais para meus sentimentos ter uma
família de novo, eu adoraria. E é justamente por isso que seria tão perigoso.
Juízo, Clara!
“Hunf!”
O interfone toca nos tirando de nossos pensamentos.
— Hora de sair de nosso modo-alerta-alternativas-de-sobrevivência. A
pizza chegou. Deixa que eu desço pra pegar — diz Paty, pulando do sofá com a
mesma energia de suas noites bem dormidas. Depois ela se volta para mim e segura
meu rosto entre as mãos. — Fica calma, Branquinha. Deixa estar que cuido de
você.
E, por incrível e irresponsável que pareça, decido deixar, porque é o que
sinto que devo fazer neste momento.
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