Capítulo 21 – Explicações
I'll be there
for you
These five
words I swear to you
When you
breathe I want to be the air for you
I'll be there
for you
I'd live and
I'd die for you
I steal the
sun from the sky for you
Words can't
say what a love can do
I'll be there
for you
(I’ll be there for you – Bon Jovi)
De qualquer forma, é inútil ficar aqui. E sem Eric a noite é mais fria e
mais escura do que eu possa encarar, então volto para dentro. Antes de
enfrentar o trabalho, porém, dou uma passada rápida no banheiro só para poder
confirmar no espelho o que eu já temia: estou parecendo com alguma coisa que o
gato arrastou pelo chão da varanda.
Meu uniforme preto está todo empoeirado, a mecha de cabelo que Eric
ajeitou é só a parte menos ultrajante da bagunça que virou meu rabo de cavalo
todo bambo e meio desfeito, meus olhos estão inchados e vermelhos e há um leve
rubor num dos lados do meu rosto, onde Marina...
Ok, nada de pensar nisso por
enquanto! Você precisa dar um tempo a ela e a si mesma.
O lado prático e meio frio de minha mente me freia a tempo, antes que a
lembrança comece a doer demais. Ela tem razão, não vou sobreviver a esta noite
se não souber compartimentar as coisas. Sendo assim, procuro me concentrar no
que posso arrumar. Não há muito que eu possa fazer pelos pedaços soltos de meu
coração dolorido, mas posso ao menos recompor um pouco minha aparência. Então
lavo o rosto, arrumo o cabelo e tiro o máximo que posso da poeira das minhas roupas. É uma coisa boa que o ambiente do bar seja
escuro o suficiente para disfarçar meus olhos e tudo o mais que não deu para
consertar.
Respiro fundo, ouço a voz de Caio ecoando pelo ambiente e deixo a paz que
ele me traz fazer o seu trabalho. Não sei se minha tática de não pensar no
assunto vai funcionar hoje, mas tenho que tentar. Talvez me focar no bar e nas
pessoas que estão aqui possa ser o jeito. Sendo assim, quase fico feliz quando,
no momento exato em que ponho meus pés no salão, Paty vem até mim encarnando o
gato que andou arrastando coisas pela varanda.
— Por onde diabos você andou? Estou te dando cobertura há uns quarenta
minutos, mas já não estou dando conta de todas as mesas!
Quarenta minutos? Huh. Pareceu bem
mais. Acho que é bom que não tenha passado tanto tempo assim. E ruim também,
porque é mais tempo tendo que fingir que está tudo bem. E eu nem me lembro de
ter pago o tíquete desta montanha-russa com tantos altos e baixos. Gente que
não paga não devia ser retirada do parque?Porque eu acho que pra mim já deu.
— Eu estava preocupada com você, sabia? — esbraveja Paty, interrompendo
minha festa da autopiedade e empurrando a bandeja para minhas mãos antes que eu
possa raciocinar. — Você nunca fez um negócio desses! Só te acobertei por isso,
porque achei que fosse algo sério. Era algo sério?
— Bom, é...
— Ok, pode parar! Isto aqui — diz ela fazendo um gesto circular com uma
das mãos em frente ao meu rosto — é o que você faz quando está inventando
alguma coisa pra me enrolar! Vai lá, leva essas bebidas pra mesa oito e depois
volta com cara de quem vai falar a verdade. Vou ali, atender os meus clientes, pra variar.
Obedeço sem pestanejar, porque: primeiro, é o que eu tenho que fazer
mesmo; segundo, preciso de tempo para poder enfrentá-la e não deixar minha
expressão me delatar dessa maneira. Já fui melhor nisso, pelo visto, mas hoje
vai ser dureza.
Faço o que precisa ser feito: entrego os pedidos aos clientes, sorrio
para eles e mantenho uma expressão neutra quando me dou conta de que há outras
pessoas na mesa antes ocupada por Marina. Obviamente, quero formular uma
mentira que preste nestes poucos minutos que tenho para me preparar, mas,
compreensivelmente, minha fabriqueta de engodos está um pouco disfuncional
hoje. Então acabo voltando para Paty com nada além de uma cara que se pretende
convincente e uma técnica defletora que consiste em tentar distraí-la com
perguntas.
— Samuel percebeu que eu sumi?
— Claro, né? Todo mundo percebeu. E todo mundo viu Eric desaparecer logo
depois e voltar uns minutinhos antes de você. Vai me dizer o que está
acontecendo ou não?
Ah. Não?
Por um minuto chego a cogitar contar tudo, quer dizer, tudo mesmo a ela. Acho que alguém me
ligou no modo “chutador de baldes” depois de tudo o que aconteceu hoje.
Felizmente isso não dura muito, especialmente depois que tento encontrar os
olhos de Eric e ele os desvia de mim, focando-se no trabalho, meu príncipe de
volta ao seu trono de gelo.
Nessa hora, decido que aqueles momentos lá fora são só meus. São minhas
lembranças agora, já que Eric não as quer dividir comigo. Quero poder voltar
para elas do jeito exato como as guardei, sem que haja ninguém lá além de mim e
daquele homem que se “esconde” atrás desse que está aqui. Além do mais, não é
como se eu pudesse contar à minha amiga as circunstâncias que motivaram meu
“encontro” com Eric no estacionamento. Mas suponho que, já que não consigo
pensar numa mentira que me encoberte, talvez eu possa usar parte da verdade e a
imaginação de Paty a meu favor.
— Você disse alguma coisa pro Samuel quando ele te perguntou?
— Bom, queridinha, fique feliz que eu sou boa em inventar desculpas de
última hora. Eu disse a ele que você recebeu um telefonema da sua tia velhinha
que mora aqui perto. Lembra dela?
— Mas eu não...
— Nãããoo? Que absurdo! É por isso que a coitadinha te ligou pedindo ajuda
hoje, porque ninguém nessa família ingrata lembra dela.
— Mas, Paty...
— Fica quieta! Eu sei que você não tem tia, mas o Samuel não sabe. E a
pobre mulher estava passando mal e você teve que pedir a Eric que te deixasse
sair uns minutinhos. Aí o Samuel ficou, tipo: “E é claro que ele deixou, não
é?”, porque ele está sempre louco para arranjar algum motivo pra ficar todo
irônico e nervosinho. E como eu adivinhei, porque eu sou boa assim, que você
estava com o Eric, disse que ele se ofereceu pra te levar até lá, porque você
estava meio abalada pra dirigir. Não que ele deva satisfações pro Samuel, mas,
enfim... E agora você pode me agradecer contando a verdade. Por favor?
Obrigada.
— Bom, eu estava com Eric. Estávamos lá fora.
— Sabia. — Ela bufa.
Acho que inventar uma desculpa plausível pra o meu sumiço e, ainda por
cima, negar que estávamos juntos depois de toda essa teorização dela está fora
de cogitação nestas alturas. Partes da verdade deixam a mentira mais crível.
Então é hora de reduzir as perdas.
— E você meio que acertou, mas na verdade foi o contrário — continuo. —
Eric não está bem esta noite, você reparou? Viu como ele está pálido?
— É. Agora que você falou...
— Então. Eu tinha ido lá fora buscar meu celular que esqueci no carro e
quando estava voltando o encontrei sentado na entrada, e ele estava bem pior do
que agora, parecia horrível. Ele disse que estava lá tomando um ar e que já ia
ficar bem, mas eu achei melhor ficar com ele até que estivesse melhor de
verdade.
— Doente? E você ficou lá “cuidando” dele? — Paty às vezes me faz odiar
aspas no ar. — Entendi. E, tipo, celular. Amiga. Aviso. Nada?
— Desculpe. Não pensei nisso.
— Claro que você não pensou. Aham. Mas, tá, você é adulta, sabe o que
está fazendo. Depois não diga que não avisei.
— Eu juro, Paty. Não aconteceu nada.
Nada das coisas que você está
pensando, pelo menos.
Ela olha pra mim e me examina, tentando sondar a verdade. Se Paty fosse
um polígrafo eu estaria em maus lençóis, mas como ela é minha amiga e tende a
achar que sou uma boa pessoa, ela acaba fazendo um esforço para acreditar e, ao
longo da noite, fica tudo bem entre nós. Agradeço mil vezes por ela ter me
arranjado um álibi e, internamente, outras duas mil por ela acreditar em mim e me
deixar em paz, mesmo que minha mentira tenha sido tão fajuta.
Fora isso, a noite é terrível. Samuel me olha de cara feia o tempo todo,
Lara me lança sorrisinhos debochados e Eric ignora minha existência como se eu
tivesse imaginado os braços dele ao meu redor. A única coisa que me mantém de
pé é Caio. A voz dele me embala pelas horas de trabalho e depois, quando ele me
leva até meu carro no fim do expediente, a simples presença dele me consola.
— Você gostou do show de hoje? — ele pergunta, mas não está vibrante como
sempre. Esta noite ele parece decepcionado com alguma coisa.
Junte-se ao clube, Bebê.
— Claro. Adorei. — Tento animá-lo, mas não funciona muito. Meu coração se
aperta com as possibilidades que me vêm à cabeça, mas preciso de informações,
não de suposições. — O que foi? O que está te incomodando?
— Ah, é bobagem.
— Nada disso. Nunca é. Diga o que aconteceu.
— Minha mãe. Ela e meu pai vieram aqui hoje. Eu já chamei mil vezes, mas
eles sempre têm arranjado desculpas. Eu sei que é porque eles querem que eu faça
faculdade e deixe esta coisa de cantar em bares pra lá, mas hoje parece que
resolveram me dar uma trégua e vieram. Só que aí, sei lá o que aconteceu, mas
eles foram embora um pouco antes do começo do show. Eu os vi uma hora e de
repente não estavam mais lá. Eu até vi alguém ligar pro meu pai e ele me deu um
sorrisinho de longe, se desculpando, e depois sumiu.
Então ele não sabe de nada. Graças
a Deus!
Faço um esforço para acreditar que Marina vai inventar uma desculpa para
ele, porque o que ela vai dizer? A verdade? Vai dizer que o quer longe de mim,
pois eu sou a mesma Clara de vinte anos atrás e tentei convencê-la de que sou
um anjo? Ela passaria por louca e sei que ela é mais esperta do que isso.
— Talvez a babá que ficou com sua irmãzinha tenha tido algum problema.
— É, pode ser. Mas eu queria que eles conhecessem você. E que me ouvissem
cantar, pelo menos uma vez. Queria que eles soubessem que eu sou bom nisso, que
isso é minha vida.
— Eles sabem, Caio. Mesmo que ainda não entendam, em algum nível eles já
aceitaram. Dá pra ver seu amor pela música nos seus olhos. Tanto amor assim não
pode ser ignorado por muito tempo.
— Como o meu por você?
Ele põe a mão no meu rosto e dá um passo a frente, pronto para fazer algo
para o que ele não pode estar pronto nunca. Ponho as duas mãos no peito dele e
o afasto. A mágoa com que ele me olha parte meu coração em mil pedaços, bem
quando eu acho que não existe mais nenhuma parte ilesa dele para ser
dilacerada.
— Caio...
— Eu sei, eu sei. Somos só amigos. Certo.
Baixo os olhos, porque não consigo vê-lo triste. Não posso mais com este
dia que não acaba e estou prestes a desmoronar outra vez.
— É o cara novo, não é? O dono do bar. Eu vi como você olha pra ele.
Não tenho coragem de negar. Eric é... Algo que não posso definir, mas que
tampouco posso ignorar crescendo dentro de mim.
Mas eu daria tudo pra que isso não magoasse Caio.
— Você me disse uma vez que confia em mim, que acredita nas coisas que
digo. É verdade? — pergunto.
— Sempre.
— Então confie em mim. Ainda não estou pronta pra te explicar certas
coisas a meu respeito, mas você pode acreditar que eu não quero perder você
jamais. Eu não te amo do jeito que você quer, mas te amo muito mais do que você
possa imaginar. Um dia você vai entender. Você acredita?
Ele me abraça e meu corpo se enche de amor e luz. Não é como foi com
Eric, é totalmente diferente, mas de certa forma é igual também, porque o amor
é uma coisa só, no final das contas. E eu amo esses homens de maneiras
diferentes, mas tanto que quase me faz parar de respirar.
E essa é a primeira vez que admito para mim mesma que amo Eric também.
Sim. Eu amo.
Minha nossa.
Tenho me sentido quebrada há tanto tempo que quase dói quando as partes
dispersas de mim começam a se juntar. Como as pessoas suportam isso? Terem seus
corações partidos tão impiedosamente tantas vezes, para logo depois serem
restaurados e partidos de novo. E de novo. E de novo? Sinto-me como o pobre
Prometeu acorrentado[1].
Mas é Caio quem está aqui agora e este momento é sobre tentar não partir o
coração dele.
— Eu não entendo — ele resmunga com uma voz estranha, abafada em meu
ombro.
Pelo amor de Deus, Bebê. Se você
chorar eu vou morrer. De verdade. Não faça isso comigo.
Preciso ser forte por ele, por nós dois. Tento lembrar quem eu sou e que
tenho uma missão, tento me distanciar desta humana vulnerável e sem forças que
me tornei nessas últimas horas, mas não consigo. Não esta noite. E tudo o que
posso fazer, as únicas energias que me restam, eu uso para não desmoronar na
frente dele. Deixo que ele me abrace e que se agarre a mim como me agarrei a
Eric mais cedo. Ao menos Caio eu posso tentar salvar.
— Não entendo mesmo — ele continua. — Mas... tem uma coisa dentro de mim, eu não sei explicar. É como uma voz que eu
ouço às vezes. Ela me diz pra confiar em você, para aceitar o que você quer me
dar.
— Você também já me disse que sentia que eu e você éramos diferentes dos
outros. Essa é a parte de você que é igual a mim. Escute essa voz. Posso te
ensinar a lidar com isso. Confie em mim.
— O que é? Eu não entendo o que é isso. E não entendo por que preciso
tanto de você, mas você não precisa de mim.
Ah, meu menino, você não poderia
estar mais errado!
— Mas eu preciso. Por favor, não se afaste. Nunca. Eu não posso ficar sem
você nunca mais.
— Nunca mais?
— Nunca, eu quis dizer. — Só percebo agora que falei demais. Espero que
ele acredite que foi só uma palavra mal colocada.
— Tudo bem — ele se limita a dizer. — Não vou a lugar nenhum.
Ficamos ali um pouco até que Caio se sente pronto. Ele me solta e sorri
para mim, fazendo outro pedaço minúsculo de meu coração quebrado se regenerar.
— Acho que você deve estar pronta para ir para casa, não é? Parece que
você está bem cansada.
— Um pouco. — Muito. — Mas
posso ficar mais se você quiser. — Posso
ficar a vida inteira se você precisar de mim.
— Não, tudo bem. Também preciso de um tempo para pôr a cabeça no lugar.
— Certo. Você vai ficar bem?
— Claro. Desde que você não acorde amanhã me odiando por eu ter tentado
te beijar, mesmo você já tendo dito que não queria. — Ele ri sem humor algum.
— Eu nunca vou odiar você. Eu te amo.
Talvez dizer isso neste momento torne as coisas ainda mais confusas para
ele, mas de repente sinto uma necessidade urgente de que ele saiba.
— Só não daquele jeito — ele completa por mim.
— De um jeito melhor.
— Ok, esta é uma conversa esquisita, mas eu fico feliz que você me diga
isso. Espero entender logo o que você quer dizer, mas de qualquer jeito não vai
ser mesmo esta noite.
— Talvez não — respondo sorrindo. Não vai ser agora, mas vai ficar tudo
bem. Com nós dois. — Boa noite então, durma bem.
Ele me dá um beijo na testa e eu entro no carro. Quando estou dando
partida, porém, ele começa a bater na janela, pedindo para eu abaixar o vidro.
Faço isso e a mão dele segura meu rosto quando ele se abaixa para ficar no
nível de meus olhos.
— Só queria que você soubesse, eu... acho que não vou conseguir dormir se
não disser... Bom, eu sei que você sabe, mas preciso dizer de novo que eu
também amo você e que não quero que você tenha medo. Eu acredito no que você
diz.
— Caio, eu...
— Não precisa dizer nada. Eu só queria que você soubesse que não vou
mesmo a lugar nenhum. Você me pediu pra não me afastar e eu não quero. Vou
ouvir a voz dentro de mim, como você falou. Então pode ir tranquila pra casa.
O que posso dizer a ele? Tenho que resolver as coisas com Marina, dar um
tempo a ela também. E preciso entender como é amar um homem como Eric e mesmo
assim ainda querer ser quem eu sou, estar por perto para meu anjo, esse garoto
que é como se fosse meu filho. Tenho tantas coisas a dizer e ao mesmo tempo não
tenho nada.
— Você me liga quando quiser me ver? — Não é grande coisa, mas é o melhor
que consigo fazer.
— Claro. Boa noite, dirija com cuidado — ele diz isso, sorri, depois se
levanta e se afasta.
E esse é o único jeito de eu finalmente me afastar também, porque não
quero. Mesmo assim, saio com meu carro e o deixo lá. Ele precisa de um tempo e
eu, que este dia acabe.
A única coisa que garante que eu chegue em casa, deite na minha cama e
consiga fechar os olhos sem chorar até dormir é estar cansada demais para
pensar ou sentir. Antes de pegar no sono, imagino que Eric está aqui comigo.
Sinto-me um pouco melhor só para lembrar que essa é outra coisa que talvez
nunca aconteça.
E mais uma vez nesta longa noite, meu coração, aparentado do fígado de
Prometeu, se dilacera só para se refazer de novo amanhã.
Talvez.
[1] Prometeu
é um titã que roubou o fogo dos deuses e o entregou aos homens. Como punição,
Zeus o fez ser acorrentado ao Monte Cáucaso, onde, todos os dias, uma águia lhe
bicava o fígado. Por ser imortal, o órgão de Prometeu se regenerava, apenas
para que o tormento recomeçasse no dia seguinte.
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