sábado, 2 de maio de 2015

ELS Cap. 21

Capítulo 21 – Explicações

I'll be there for you
These five words I swear to you
When you breathe I want to be the air for you
I'll be there for you
I'd live and I'd die for you
I steal the sun from the sky for you
Words can't say what a love can do
I'll be there for you
(I’ll be there for you – Bon Jovi)

De qualquer forma, é inútil ficar aqui. E sem Eric a noite é mais fria e mais escura do que eu possa encarar, então volto para dentro. Antes de enfrentar o trabalho, porém, dou uma passada rápida no banheiro só para poder confirmar no espelho o que eu já temia: estou parecendo com alguma coisa que o gato arrastou pelo chão da varanda.
Meu uniforme preto está todo empoeirado, a mecha de cabelo que Eric ajeitou é só a parte menos ultrajante da bagunça que virou meu rabo de cavalo todo bambo e meio desfeito, meus olhos estão inchados e vermelhos e há um leve rubor num dos lados do meu rosto, onde Marina...
Ok, nada de pensar nisso por enquanto! Você precisa dar um tempo a ela e a si mesma.
O lado prático e meio frio de minha mente me freia a tempo, antes que a lembrança comece a doer demais. Ela tem razão, não vou sobreviver a esta noite se não souber compartimentar as coisas. Sendo assim, procuro me concentrar no que posso arrumar. Não há muito que eu possa fazer pelos pedaços soltos de meu coração dolorido, mas posso ao menos recompor um pouco minha aparência. Então lavo o rosto, arrumo o cabelo e tiro o máximo que posso da poeira das minhas roupas.  É uma coisa boa que o ambiente do bar seja escuro o suficiente para disfarçar meus olhos e tudo o mais que não deu para consertar.
Respiro fundo, ouço a voz de Caio ecoando pelo ambiente e deixo a paz que ele me traz fazer o seu trabalho. Não sei se minha tática de não pensar no assunto vai funcionar hoje, mas tenho que tentar. Talvez me focar no bar e nas pessoas que estão aqui possa ser o jeito. Sendo assim, quase fico feliz quando, no momento exato em que ponho meus pés no salão, Paty vem até mim encarnando o gato que andou arrastando coisas pela varanda.
— Por onde diabos você andou? Estou te dando cobertura há uns quarenta minutos, mas já não estou dando conta de todas as mesas!
Quarenta minutos? Huh. Pareceu bem mais. Acho que é bom que não tenha passado tanto tempo assim. E ruim também, porque é mais tempo tendo que fingir que está tudo bem. E eu nem me lembro de ter pago o tíquete desta montanha-russa com tantos altos e baixos. Gente que não paga não devia ser retirada do parque?Porque eu acho que pra mim já deu.
— Eu estava preocupada com você, sabia? — esbraveja Paty, interrompendo minha festa da autopiedade e empurrando a bandeja para minhas mãos antes que eu possa raciocinar. — Você nunca fez um negócio desses! Só te acobertei por isso, porque achei que fosse algo sério. Era algo sério?
— Bom, é...
— Ok, pode parar! Isto aqui — diz ela fazendo um gesto circular com uma das mãos em frente ao meu rosto — é o que você faz quando está inventando alguma coisa pra me enrolar! Vai lá, leva essas bebidas pra mesa oito e depois volta com cara de quem vai falar a verdade. Vou ali, atender os meus clientes, pra variar.
Obedeço sem pestanejar, porque: primeiro, é o que eu tenho que fazer mesmo; segundo, preciso de tempo para poder enfrentá-la e não deixar minha expressão me delatar dessa maneira. Já fui melhor nisso, pelo visto, mas hoje vai ser dureza.
Faço o que precisa ser feito: entrego os pedidos aos clientes, sorrio para eles e mantenho uma expressão neutra quando me dou conta de que há outras pessoas na mesa antes ocupada por Marina. Obviamente, quero formular uma mentira que preste nestes poucos minutos que tenho para me preparar, mas, compreensivelmente, minha fabriqueta de engodos está um pouco disfuncional hoje. Então acabo voltando para Paty com nada além de uma cara que se pretende convincente e uma técnica defletora que consiste em tentar distraí-la com perguntas.
— Samuel percebeu que eu sumi?
— Claro, né? Todo mundo percebeu. E todo mundo viu Eric desaparecer logo depois e voltar uns minutinhos antes de você. Vai me dizer o que está acontecendo ou não?
Ah. Não?
Por um minuto chego a cogitar contar tudo, quer dizer, tudo mesmo a ela. Acho que alguém me ligou no modo “chutador de baldes” depois de tudo o que aconteceu hoje. Felizmente isso não dura muito, especialmente depois que tento encontrar os olhos de Eric e ele os desvia de mim, focando-se no trabalho, meu príncipe de volta ao seu trono de gelo.
Nessa hora, decido que aqueles momentos lá fora são só meus. São minhas lembranças agora, já que Eric não as quer dividir comigo. Quero poder voltar para elas do jeito exato como as guardei, sem que haja ninguém lá além de mim e daquele homem que se “esconde” atrás desse que está aqui. Além do mais, não é como se eu pudesse contar à minha amiga as circunstâncias que motivaram meu “encontro” com Eric no estacionamento. Mas suponho que, já que não consigo pensar numa mentira que me encoberte, talvez eu possa usar parte da verdade e a imaginação de Paty a meu favor.
— Você disse alguma coisa pro Samuel quando ele te perguntou?
— Bom, queridinha, fique feliz que eu sou boa em inventar desculpas de última hora. Eu disse a ele que você recebeu um telefonema da sua tia velhinha que mora aqui perto. Lembra dela?
— Mas eu não...
— Nãããoo? Que absurdo! É por isso que a coitadinha te ligou pedindo ajuda hoje, porque ninguém nessa família ingrata lembra dela.
— Mas, Paty...
— Fica quieta! Eu sei que você não tem tia, mas o Samuel não sabe. E a pobre mulher estava passando mal e você teve que pedir a Eric que te deixasse sair uns minutinhos. Aí o Samuel ficou, tipo: “E é claro que ele deixou, não é?”, porque ele está sempre louco para arranjar algum motivo pra ficar todo irônico e nervosinho. E como eu adivinhei, porque eu sou boa assim, que você estava com o Eric, disse que ele se ofereceu pra te levar até lá, porque você estava meio abalada pra dirigir. Não que ele deva satisfações pro Samuel, mas, enfim... E agora você pode me agradecer contando a verdade. Por favor? Obrigada.
— Bom, eu estava com Eric. Estávamos lá fora.
— Sabia. — Ela bufa.
Acho que inventar uma desculpa plausível pra o meu sumiço e, ainda por cima, negar que estávamos juntos depois de toda essa teorização dela está fora de cogitação nestas alturas. Partes da verdade deixam a mentira mais crível. Então é hora de reduzir as perdas.
— E você meio que acertou, mas na verdade foi o contrário — continuo. — Eric não está bem esta noite, você reparou? Viu como ele está pálido?
— É. Agora que você falou...
— Então. Eu tinha ido lá fora buscar meu celular que esqueci no carro e quando estava voltando o encontrei sentado na entrada, e ele estava bem pior do que agora, parecia horrível. Ele disse que estava lá tomando um ar e que já ia ficar bem, mas eu achei melhor ficar com ele até que estivesse melhor de verdade.
— Doente? E você ficou lá “cuidando” dele? — Paty às vezes me faz odiar aspas no ar. — Entendi. E, tipo, celular. Amiga. Aviso. Nada?
— Desculpe. Não pensei nisso.
— Claro que você não pensou. Aham. Mas, tá, você é adulta, sabe o que está fazendo. Depois não diga que não avisei.
— Eu juro, Paty. Não aconteceu nada.
Nada das coisas que você está pensando, pelo menos.
Ela olha pra mim e me examina, tentando sondar a verdade. Se Paty fosse um polígrafo eu estaria em maus lençóis, mas como ela é minha amiga e tende a achar que sou uma boa pessoa, ela acaba fazendo um esforço para acreditar e, ao longo da noite, fica tudo bem entre nós. Agradeço mil vezes por ela ter me arranjado um álibi e, internamente, outras duas mil por ela acreditar em mim e me deixar em paz, mesmo que minha mentira tenha sido tão fajuta.
Fora isso, a noite é terrível. Samuel me olha de cara feia o tempo todo, Lara me lança sorrisinhos debochados e Eric ignora minha existência como se eu tivesse imaginado os braços dele ao meu redor. A única coisa que me mantém de pé é Caio. A voz dele me embala pelas horas de trabalho e depois, quando ele me leva até meu carro no fim do expediente, a simples presença dele me consola.
— Você gostou do show de hoje? — ele pergunta, mas não está vibrante como sempre. Esta noite ele parece decepcionado com alguma coisa.
Junte-se ao clube, Bebê.
— Claro. Adorei. — Tento animá-lo, mas não funciona muito. Meu coração se aperta com as possibilidades que me vêm à cabeça, mas preciso de informações, não de suposições. — O que foi? O que está te incomodando?
— Ah, é bobagem.
— Nada disso. Nunca é. Diga o que aconteceu.
— Minha mãe. Ela e meu pai vieram aqui hoje. Eu já chamei mil vezes, mas eles sempre têm arranjado desculpas. Eu sei que é porque eles querem que eu faça faculdade e deixe esta coisa de cantar em bares pra lá, mas hoje parece que resolveram me dar uma trégua e vieram. Só que aí, sei lá o que aconteceu, mas eles foram embora um pouco antes do começo do show. Eu os vi uma hora e de repente não estavam mais lá. Eu até vi alguém ligar pro meu pai e ele me deu um sorrisinho de longe, se desculpando, e depois sumiu.
Então ele não sabe de nada. Graças a Deus!
Faço um esforço para acreditar que Marina vai inventar uma desculpa para ele, porque o que ela vai dizer? A verdade? Vai dizer que o quer longe de mim, pois eu sou a mesma Clara de vinte anos atrás e tentei convencê-la de que sou um anjo? Ela passaria por louca e sei que ela é mais esperta do que isso.
— Talvez a babá que ficou com sua irmãzinha tenha tido algum problema.
— É, pode ser. Mas eu queria que eles conhecessem você. E que me ouvissem cantar, pelo menos uma vez. Queria que eles soubessem que eu sou bom nisso, que isso é minha vida.
— Eles sabem, Caio. Mesmo que ainda não entendam, em algum nível eles já aceitaram. Dá pra ver seu amor pela música nos seus olhos. Tanto amor assim não pode ser ignorado por muito tempo.
— Como o meu por você?
Ele põe a mão no meu rosto e dá um passo a frente, pronto para fazer algo para o que ele não pode estar pronto nunca. Ponho as duas mãos no peito dele e o afasto. A mágoa com que ele me olha parte meu coração em mil pedaços, bem quando eu acho que não existe mais nenhuma parte ilesa dele para ser dilacerada.
— Caio...
— Eu sei, eu sei. Somos só amigos. Certo.
Baixo os olhos, porque não consigo vê-lo triste. Não posso mais com este dia que não acaba e estou prestes a desmoronar outra vez.
— É o cara novo, não é? O dono do bar. Eu vi como você olha pra ele.
Não tenho coragem de negar. Eric é... Algo que não posso definir, mas que tampouco posso ignorar crescendo dentro de mim.  Mas eu daria tudo pra que isso não magoasse Caio.
— Você me disse uma vez que confia em mim, que acredita nas coisas que digo. É verdade? — pergunto.
— Sempre.
— Então confie em mim. Ainda não estou pronta pra te explicar certas coisas a meu respeito, mas você pode acreditar que eu não quero perder você jamais. Eu não te amo do jeito que você quer, mas te amo muito mais do que você possa imaginar. Um dia você vai entender. Você acredita?
Ele me abraça e meu corpo se enche de amor e luz. Não é como foi com Eric, é totalmente diferente, mas de certa forma é igual também, porque o amor é uma coisa só, no final das contas. E eu amo esses homens de maneiras diferentes, mas tanto que quase me faz parar de respirar.
E essa é a primeira vez que admito para mim mesma que amo Eric também.
Sim. Eu amo.
Minha nossa.
Tenho me sentido quebrada há tanto tempo que quase dói quando as partes dispersas de mim começam a se juntar. Como as pessoas suportam isso? Terem seus corações partidos tão impiedosamente tantas vezes, para logo depois serem restaurados e partidos de novo. E de novo. E de novo? Sinto-me como o pobre Prometeu acorrentado[1]. Mas é Caio quem está aqui agora e este momento é sobre tentar não partir o coração dele.
— Eu não entendo — ele resmunga com uma voz estranha, abafada em meu ombro.
Pelo amor de Deus, Bebê. Se você chorar eu vou morrer. De verdade. Não faça isso comigo.
Preciso ser forte por ele, por nós dois. Tento lembrar quem eu sou e que tenho uma missão, tento me distanciar desta humana vulnerável e sem forças que me tornei nessas últimas horas, mas não consigo. Não esta noite. E tudo o que posso fazer, as únicas energias que me restam, eu uso para não desmoronar na frente dele. Deixo que ele me abrace e que se agarre a mim como me agarrei a Eric mais cedo. Ao menos Caio eu posso tentar salvar.
— Não entendo mesmo — ele continua. — Mas... tem uma coisa dentro de mim, eu não sei explicar. É como uma voz que eu ouço às vezes. Ela me diz pra confiar em você, para aceitar o que você quer me dar.
— Você também já me disse que sentia que eu e você éramos diferentes dos outros. Essa é a parte de você que é igual a mim. Escute essa voz. Posso te ensinar a lidar com isso. Confie em mim.
— O que é? Eu não entendo o que é isso. E não entendo por que preciso tanto de você, mas você não precisa de mim.
Ah, meu menino, você não poderia estar mais errado!
— Mas eu preciso. Por favor, não se afaste. Nunca. Eu não posso ficar sem você nunca mais.
— Nunca mais?
— Nunca, eu quis dizer. — Só percebo agora que falei demais. Espero que ele acredite que foi só uma palavra mal colocada.
— Tudo bem — ele se limita a dizer. — Não vou a lugar nenhum.
Ficamos ali um pouco até que Caio se sente pronto. Ele me solta e sorri para mim, fazendo outro pedaço minúsculo de meu coração quebrado se regenerar.
— Acho que você deve estar pronta para ir para casa, não é? Parece que você está bem cansada.
— Um pouco. — Muito. — Mas posso ficar mais se você quiser. — Posso ficar a vida inteira se você precisar de mim.
— Não, tudo bem. Também preciso de um tempo para pôr a cabeça no lugar.
— Certo. Você vai ficar bem?
— Claro. Desde que você não acorde amanhã me odiando por eu ter tentado te beijar, mesmo você já tendo dito que não queria. — Ele ri sem humor algum.
— Eu nunca vou odiar você. Eu te amo.
Talvez dizer isso neste momento torne as coisas ainda mais confusas para ele, mas de repente sinto uma necessidade urgente de que ele saiba.
— Só não daquele jeito — ele completa por mim.
— De um jeito melhor.
— Ok, esta é uma conversa esquisita, mas eu fico feliz que você me diga isso. Espero entender logo o que você quer dizer, mas de qualquer jeito não vai ser mesmo esta noite.
— Talvez não — respondo sorrindo. Não vai ser agora, mas vai ficar tudo bem. Com nós dois. — Boa noite então, durma bem.
Ele me dá um beijo na testa e eu entro no carro. Quando estou dando partida, porém, ele começa a bater na janela, pedindo para eu abaixar o vidro. Faço isso e a mão dele segura meu rosto quando ele se abaixa para ficar no nível de meus olhos.
— Só queria que você soubesse, eu... acho que não vou conseguir dormir se não disser... Bom, eu sei que você sabe, mas preciso dizer de novo que eu também amo você e que não quero que você tenha medo. Eu acredito no que você diz.
— Caio, eu...
— Não precisa dizer nada. Eu só queria que você soubesse que não vou mesmo a lugar nenhum. Você me pediu pra não me afastar e eu não quero. Vou ouvir a voz dentro de mim, como você falou. Então pode ir tranquila pra casa.
O que posso dizer a ele? Tenho que resolver as coisas com Marina, dar um tempo a ela também. E preciso entender como é amar um homem como Eric e mesmo assim ainda querer ser quem eu sou, estar por perto para meu anjo, esse garoto que é como se fosse meu filho. Tenho tantas coisas a dizer e ao mesmo tempo não tenho nada.
— Você me liga quando quiser me ver? — Não é grande coisa, mas é o melhor que consigo fazer.
— Claro. Boa noite, dirija com cuidado — ele diz isso, sorri, depois se levanta e se afasta.
E esse é o único jeito de eu finalmente me afastar também, porque não quero. Mesmo assim, saio com meu carro e o deixo lá. Ele precisa de um tempo e eu, que este dia acabe.
A única coisa que garante que eu chegue em casa, deite na minha cama e consiga fechar os olhos sem chorar até dormir é estar cansada demais para pensar ou sentir. Antes de pegar no sono, imagino que Eric está aqui comigo. Sinto-me um pouco melhor só para lembrar que essa é outra coisa que talvez nunca aconteça.
E mais uma vez nesta longa noite, meu coração, aparentado do fígado de Prometeu, se dilacera só para se refazer de novo amanhã.
Talvez.


[1] Prometeu é um titã que roubou o fogo dos deuses e o entregou aos homens. Como punição, Zeus o fez ser acorrentado ao Monte Cáucaso, onde, todos os dias, uma águia lhe bicava o fígado. Por ser imortal, o órgão de Prometeu se regenerava, apenas para que o tormento recomeçasse no dia seguinte.

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