Capítulo 22 —
Montanha-russa
I feel alive beside you
And
all at once, I am whole again
We
fall into each other
Your
atmosphere is all I'm breathing in
And
in this rush, we are crushed
Carry
me down
Rolling
in your arms
Cause
I can't remember ever falling this hard
Tell
me tonight
All
that we had planned
Was
it nothing more than noise inside my head
Crashing
down, crashing down
In
your avalanche, in your avalanche
(Avalanche
– David Cook)
Há este breve segundo de ilusão
quando acordamos. Um instante fugaz e belo em que nada parece errado em nenhuma
parte e nossos problemas ainda não existem, imateriais demais para adentrarem
nossa percepção. Acontece antes de abrirmos nossos olhos, justo entre o sono e
a realidade, quando ainda estamos tão fechados em nós mesmos que o mundo não
consegue entrar pelas frestas de nossa consciência.
É um momento tão breve que sequer
nos damos conta dele quando tudo está bem, mas quando não está, naqueles dias
em que viver parece ser algo terrivelmente doloroso, é a melhor sensação do
dia. Seguida da pior, que é quando a ilusão acaba, no minuto em que você abre
os olhos e os braços para o mundo.
É uma tarde chuvosa de domingo e
quase rio quando me dou conta do clichê. Acho que não pode haver dia mais
propício para alguém se afundar em melancolia, embora “propícia” não me pareça
uma boa palavra para esta sensação que me prende à cama até as quatro da tarde.
Durante os dias de semana, nossa
vida é quase normal, mas às sextas e sábados trabalhamos até altas horas da
madrugada, então não é raro para mim dormir até a metade do dia seguinte.
Entretanto, fui muito além de qualquer limite desta vez, porque, embora há
horas eu já não consiga mais manter meus olhos fechados, também não pude me
forçar a sair da posição fetal que assumi desde que acordei e as lembranças de
ontem me invadiram.
Na noite passada eu tinha Eric ao
meu lado, ao meu redor, o calor dele impregnado em mim e mais nada que fosse
tão sôfrego quanto meu desejo de estar com ele ali, naquele momento, e depois.
E mesmo quando acabou, eu tinha a lembrança dos braços dele para me carregar
pela noite.
Depois veio Paty com sua preocupação
e seu cuidado, e toda a alegria que emana dessa menina e da amizade que ela
dedica a mim em troca de tão pouco que tenho a oferecer. Ela é sempre um
consolo. Tanto quanto Caio, que me faz sentir que qualquer dor que a verdade
possa trazer vale a pena. Eu nunca tinha me dado conta antes do quão importante
é que as pessoas que você ama acreditem no seu amor, e Caio dá isso a mim.
Eu
tinha tudo isso e todas as coisas que estavam acontecendo dentro de mim também.
Toda a minha dor e minha decisão de ser feliz. Todas as promessas contidas
nisso. E o prazer secreto de ver minha menina, minha Marina, mesmo com tudo o
que aconteceu.
Em algum momento, de alguma forma,
meu coração se anestesiou e eu consegui flutuar por essas emoções opostas como
se estivesse entorpecida, como se minha mente estivesse se movendo em câmera
lenta e eu fosse apenas espectadora de coisas acontecendo fora de mim, fora do
meu controle. O que, de fato, não estava longe da verdade. Que controle eu
tinha sobre ontem ou sobre o que aconteceria depois? Que controle eu tenho
sobre o que vai ser a partir de agora? Bem, não sei. E certamente não me sinto
em forma para descobrir.
O que eu sei é que o torpor se foi e
hoje as coisas parecem bem diferentes. Quando abri os olhos horas atrás, a
sensação não era mais de entorpecimento e, de repente, o que eu tinha era um
sentimento recém descoberto — e com o qual não sei lidar — por um homem que é
ora gentil e atencioso, ora frio e distante; uma amiga doce e inocente para a
qual tenho que mentir o tempo todo e cujos sentimentos eu provavelmente vou
magoar; a família que eu quis para mim, mas que nunca me pertenceu de fato e a
verdade que eu não sei como contar a nenhum deles.
É como se o que quer que fosse que
estivesse me anestesiando tivesse evaporado e eu visse tudo por um prisma
diferente e bem menos favorável, para dizer o mínimo. Para falar a verdade,
estou me sentindo como se todas essas emoções tivessem se solidificado ao meu
redor numa espécie de âmbar que não me deixa me mexer.
Não literalmente, é claro. Eu podia
levantar daqui se quisesse, tomar um banho e me livrar deste pijama que só me
deixa mais deprimida. Podia preparar alguma coisa e me alimentar um pouco,
porque certamente eu estou precisando e nunca gostei de deixar meu corpo à
própria sorte. Eu podia, ou devia, fazer essas coisas. É só que sinto que nada
disso vale a pena. Nenhum movimento que eu faça para meu próprio bem, nenhuma
palavra que eu diga entre estas paredes solitárias, vai me fazer sentir melhor.
Acabo saindo da cama apenas porque
meu corpo se rebela contra a inércia que lhe impus e exige socorro — um pouco
de movimento, banheiro e ao menos um copo d’água — antes de eu voltar outra vez
para meu refúgio. E é isso que estou tentando fazer quando vejo meu uniforme
jogado sobre uma poltrona e me lembro que falta pouco tempo para que eu tenha
que encarar a realidade. Hoje é domingo e, embora o movimento seja mais
tranquilo e o bar feche mais cedo, tenho que trabalhar. Sendo assim, o prazo
dado para “a-Clara-sentir-pena-de-si-mesma” está se esgotando e eu preciso
fazer alguma coisa para reagir.
Começo por escovar os dentes e tomar
um banho rápido, providências mais do que necessárias, mas isso não me faz
sentir melhor. Ao contrário, a cada minuto meu corpo cobra mais de mim por eu
ter passado o dia negligenciando-o. Minha cabeça lateja de dor, provavelmente
resultado de eu ter fingido que água e comida eram coisas desnecessárias; além
disso, ficar na cama o dia todo só piorou tudo. Como consequência da cabeça
latejante, meu estômago está um pouco revirado, mas eu me forço a comer algumas
frutas e tomo um comprimido para a dor.
Não adianta muita coisa. Ainda não
me sinto bem e acho que talvez eu esteja ficando doente, uma gripe ou algo
assim — embora isso nunca aconteça comigo—, porque meu corpo está cansado e
dolorido. Acho que a última vez em que me senti assim já faz muitos anos, mas
ultimamente imprevistos têm sido uma constante, então não devo me surpreender.
A simples ideia de ter que enfrentar
uma noite de trabalho sem que nem minha mente nem meu corpo estejam preparados
para isso faz meu estômago se revoltar ainda mais, e sou forçada a aceitar a
realidade. Por mais que a ideia de deixar minhas responsabilidades de lado me
seja estranha, não posso enfrentar outra noite como a de ontem.
Não é que eu esteja esperando que
Marina vá aparecer novamente ou que Eric vá deixar seu trono de gelo e alguma
outra coisa vá acontecer entre nós. Na verdade, não acho que vá acontecer nada
disso e — não sei por quê — essa constatação é quase pior. Não posso estar no
topo da montanha numa noite e no fundo do vale em outra. Eu realmente preciso
de um tempo, e ontem prometi a mim mesma que não havia nada de errado em querer
estar bem e me focar em minhas necessidades de vez em quando.
É por isso que me animo a ligar para
Samuel — não para Eric — para dizer que estou doente e pedir que ele chame Lara
para me substituir, apenas por esta noite. No entanto, quando pego o celular
para encontrar o número dele, sinto minha cabeça dolorida ser apertada por uma
morsa. Na tela iluminada, há uma mensagem estranha e ofensiva vinda de um
número privado:
VADIA,
VC N É COMO EU PENSAVA.
Por um segundo, passa pela minha
cabeça que essa coisa horrível tenha sido mandada por Marina, mas rechaço o
pensamento na hora, porque minha menina nunca faria isso. Ela nunca me magoaria
assim, mesmo estando ferida. Não posso acreditar que ela poderia. Entretanto, o
instante ínfimo em que essa ideia me pareceu plausível é suficiente para me
roubar o pouco das forças que eu havia recobrado e caio no choro novamente como
uma boba.
Sinto-me tola por ficar triste com
algo assim, que eu nem sei de quem partiu e que pode bem ser um trote ou um
engano. Mas há todas essas coisas boas e ruins, novas e dolorosas, estranhas e
maravilhosas, acontecendo em minha vida e eu, que sempre vivi sem grandes
solavancos, sinto-me sobrecarregada por tudo. Meu coração está revestido
daquela pele fina dos ferimentos recentes demais e tudo parece me fazer sangrar
um pouco.
Quando meus sentimentos se acalmam,
ligo para Samuel, que não me atende com simpatia e parece não acreditar em mim,
embora eu nunca tenha faltado ao trabalho no bar, mas mesmo assim diz que vai
avisar Lara e Eric. Eu agradeço muito e tento fazer parecer que ele está me
fazendo um favor insubstituível, porque a disposição de espírito de Samuel
sempre fica melhor quando ele sente que as coisas que lhe parecem um grande
esforço estão sendo apreciadas, então o humor dele melhora um pouco antes de
desligarmos. Um pouquinho, pelo menos.
Também ligo para Paty e tenho que
revirar os olhos para o telefone quando ela insinua que eu peguei minha “gripe”
— que a estas alturas está me parecendo mais com uma ressaca sentimental — de
Eric, quando ficamos juntos ontem à noite. Ela dá à palavra “juntos” uma
conotação maliciosa e eu me pego desejando que as coisas que ela está
imaginando fossem verdade, o que me rende um rubor que dou graças aos céus por
ninguém estar vendo.
Depois de praguejar mil vezes por
ter que trabalhar ao lado de Lara, me passar novecentas e quarenta e quatro mil
recomendações para que eu me cuide e me garantir que vem aqui amanhã ver como
eu estou, não importa quantas vezes eu diga que não precisa, Paty desliga o
telefone para se arrumar para o trabalho e eu volto a ficar sozinha com meus pensamentos.
Embora eu tente, não consigo tirar a
mensagem da cabeça e fico pensando quem eu posso ter ofendido, se é que a
mensagem é mesmo para mim. A única pessoa que conheço que não gosta de mim é
Lara, mas ela não se daria ao trabalho de fazer esse tipo de joguinho, ela
simplesmente diria o que pensa sem rodeios. Além disso, a mensagem indica que a
pessoa em questão mudou de ideia a meu respeito, e Lara sempre teve a mesma
opinião desde que nos conhecemos.
É então que me vêm à cabeça as ligações anônimas
e estranhas que vivo recebendo, as mesmas ligações que eu atribuo ao encapuzado
do estacionamento. Só pode ser isso!
Caio ficaria maluco se soubesse, e
ainda mais se descobrisse que eu menti para ele sobre ter ido à polícia, mas eu
não tenho medo daquele homem. Quem quer que ele seja, precisa desesperadamente
de ajuda. Precisa de mim. Eu senti isso com toda a força quando ele me tocou.
Foi muito estranho, mas, por um momento, era como se eu pudesse sentir o que
ele sentia e eu tive certeza de que ele não queria realmente me matar. Entretanto, se é ele o autor da mensagem, está
com raiva de mim agora e eu não faço ideia do porquê.
Depois de um tempo, tento distrair
minha cabeça com um livro, mesmo que eu esteja tão desconcentrada que tenha que
reler a mesma página duas ou três vezes. Funciona um pouco, entretanto, e estou
quase conseguindo relaxar quando meu celular toca.
Passa um pouco das sete horas quando
o número estranho aparece na tela e eu fico receosa de atender. Sei que neste
horário não será Samuel, porque ele deve estar ocupado com o bar, e a questão
da minha substituição já deve ter sido há muito resolvida. Sei os números de
Paty, Caio e Beto de cor, então não faço ideia de quem possa estar me
procurando. Por outro lado, se for o meu nada-admirador secreto já é um
progresso ele ligar de um número identificável, então eu atendo, ainda que meio
insegura de estar abrindo as portas para que este dia se estrague ainda mais.
— Clara, oi. É o Eric — a voz do
outro lado da linha me informa. Mas ele nem precisava, porque no instante em
que disse meu nome, meu coração respondeu.
— O-oi. Quem... quem te deu este
número?
Quem
se importa, tonta? Quem. Se. Importa?
—
Eu tenho o contato de todos os funcionários.
Ah.
É.
—
Certo. O que foi? Está tudo bem com você? — E aqui eu me dou um troféu
imaginário por não gaguejar.
— Comigo sim, mas Samuel disse que
você está doente.
— Sim, desculpe. Não pude ir hoje.
— Eu só queria saber... Bom, depois
de ontem... Você estava muito mal.
— Estou bem. É só que... acho que
estou meio gripada.
Droga! Tendo estado comigo ontem,
ele sabe o quanto isso soa falso. Mas eu não posso deixar que ele pense que
estou fugindo dele ou algo assim, porque, para ser sincera, “algo assim” não
passa muito longe da verdade.
— Olha, Eric, eu queria ter ido, mas
estou com muita dor de cabeça.
Ele ri. Sonoramente. Ri.
Oi?
—
Acho que é a primeira vez que usam a desculpa da dor de cabeça comigo — ele
explica, mas não me dá tempo nenhum para responder. Ainda bem, porque eu nem
sei se isso foi um insulto, uma provocação ou uma cantada. — Mas não importa.
Você está em casa?
— Sim.
— Bom. Porque eu estou em frente ao
seu prédio. Posso entrar?
— Em frente...? Mas... Como?
— Contatos dos funcionários, lembra?
Já conversamos sobre isso há... um minuto e meio, eu acho. Você está ocupada?
Como
ele pode ser tão... tão... Céus! Ele nunca me deixa saída! O que está fazendo
aqui? O que está tentando fazer comigo?
—
Clara? — ele insiste depois de eu me esquecer que preciso responder à pergunta.
— Não, não estou ocupada. Vou
apertar o botão para abrir a porta principal e você sobe. Acho que sabe o
andar, não é?
— Sei. Estou indo.
Oh,
meu Deus! Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!
“Ele está mesmo aqui! O que eu faço?”
Infelizmente
— ou felizmente — não tenho tempo para pensar nisso. Corro para o quarto e
troco a camiseta larga e comprida que Beto esqueceu comigo, e que eu uso quando
sinto falta dele, por um vestido leve e bonitinho, mas simples o suficiente
para não parecer que estou me arrumando para Eric.
Aham.
Porque você não está, não é? Essa foi só a primeira roupa que você encontrou ao
abrir o guarda-roupa, depois de jogar de lado aquela calça jeans perfeitamente
respeitável que você podia ter usado junto com a camiseta larga.
“Aaaahh...
Só fique quietinha agora, ok?”
Tudo o que eu menos preciso é ter
uma parte de mim mesma me atacando, então eu tento calá-la. Mesmo assim, ela me
lembra que eu devia parecer doente, então o porquê de eu estar preocupada em
pentear o cabelo e passar ao menos um gloss
nos lábios está além da minha compreensão. Ou não. Por fim, apenas ajeito o
cabelo com os dedos para não parecer uma louca e opto pela ausência total de
maquiagem.
Faço tudo isso correndo porque sei
que ele vai chegar em instantes, e quando ele toca a campainha e eu abro a
porta, estou com as bochechas rosadas pela pressa e a cara mais sadia do mundo.
Meleca!
Não
me venha com imprecações infantis! Eu avisei.
Não
me importo mais com o que ela diz, ou com bochechas rosadas, ou com o fato de
que... o que era mesmo? Bem, só sei que não me importo. Porque Eric está parado
à minha porta parecendo a coisa mais bonita que Deus já criou e me estendendo
uma embalagem de plástico colorida e meio brilhante.
— Trouxe para você — ele diz.
Oh,
Senhor! Essa cena é tão bonita que eu queria poder pôr num quadro.
Tiro
a fita e olho dentro da embalagem, um monte de chocolates artesanais de vários
tipos olha de volta para mim e me enche a boca d’água.
— Chocolates? — pergunto, apenas
testando o óbvio porque não sei bem o que dizer.
— Sim, eu não sabia o que trazer
para uma não-doente, mas imaginei que era difícil errar com chocolates.
Não-doente?
E você achando que engana alguém, haha!
—
Eu realmente não estava me sentindo bem... — tento argumentar. Não quero que ele
pense que tenho o costume de “matar” o trabalho, mas ele me interrompe.
— Tudo bem, Luz. Não me importo de
você ficar em casa por hoje. No que dependesse de mim, eu teria te trazido para
casa ontem, você que não quis. — E você
odiou ser contrariado! — Vai me convidar para entrar?
— Oh, meu Deus! Claro! Eu esqueci,
entre, por favor.
Que
idiota você está bancando, Clara! Toda boba com um homem à sua porta.
Mas
mesmo minha parte crítica sabe que Eric não é qualquer pessoa. Que depois de
ontem, mesmo que existisse alguma chance de eu vê-lo dessa maneira, essa chance
estaria perdida para sempre. Isso aliado ao fato de eu receber tão poucas
visitas que chego quase a esquecer como funciona. Então não há meio de eu agir
naturalmente. Já é bom o suficiente se ele não sair daqui achando que eu sou
uma ermitã irrecuperável. O que às vezes eu mesma penso que sou.
— Obrigada pelos chocolates,
realmente não tinha como errar. Pelo menos comigo.
Se
você me trouxesse um saco de pedras eu ia ficar feliz.
Um
ar de menino satisfeito ilumina sua expressão e depois some, como se ele
tivesse ficado surpreso por agradar. Ou por gostar disso. Penso que ele vai
dizer alguma coisa, algo inofensivo sobre chocolate amargo ser melhor do que ao
leite, ou sei lá. Só alguma frase simples e tola para iniciar uma conversa, mas
ele apenas volta à sua expressão mais neutra e diz algo destinado a encerrar o
assunto:
—
Bom.
Bom. Quantas vezes ele me responde
assim? É estranho como ele sempre parece ter muitas coisas a dizer, como se estivesse
tendo toda uma conversa inteiramente diferente em sua mente, mas então se
resume a uma única palavra. É a pessoa mais fechada que conheço. E nesse ponto
me dou conta de que é isso que os outros devem pensar de mim.
Ele sorri e, subitamente, não parece
mais tão fechado assim. Depois de tudo, sinto como se já o conhecesse melhor,
mesmo não sabendo nada sobre ele. Mas acho que nada disso importa muito neste
instante, só o que importa é que ele esteja aqui. E isso é um desenvolvimento
considerável quanto a como eu achei que fosse passar essa noite: tentando não
pensar nele enquanto assisto à televisão sem realmente ver ou finjo ler um
livro.
— Sente-se — convido. — Você quer
tomar alguma coisa?
Ele agradece a oferta, mas recusa a
bebida, em seguida olha em volta, em reconhecimento do espaço, e se instala no
sofá, em vez de na poltrona que lhe aponto, como se estivesse esperando que eu
me sentasse ao lado dele. Eu nunca tive muito receio de tocar nas pessoas, não
tenho medo de proximidade. Sou daquele tipo que demonstra carinho sem muitos
pudores, mas com Eric é diferente. É sempre diferente quando se trata desse
homem.
Olho para ele e não sei o que fazer,
porque quero me ajeitar em seus braços e espanar as gotas de chuva que salpicam
seu cabelo arrepiado com meus dedos, quero testar a maciez da pele de seu rosto
e me enterrar de novo naquele cheiro de planta e coisa cítrica que o perfume
dele tem, mas ao mesmo tempo não tenho coragem. Não sei o que nós temos. Mas
ele olha para mim, expectante, então eu me sento ao lado dele, deixando alguma
distância que não soe fria nem confiante demais.
— Como você está? — ele pergunta
enquanto cruza as pernas num gesto perturbadoramente elegante, que não combina
em nada com seu jeito despojado. Meu amável paradoxo! Há tantas coisas
estranhas e contrastantes a seu respeito.
Ele parece algum tipo de visão. Está
usando jeans rasgados, uma camiseta cinza escuro e os tênis de cano alto de
sempre. Seria quase juvenil demais se não combinasse tanto com ele, mas sua
expressão é séria e contemplativa, quase antiga nesse rosto, e isso só a torna
mais encantadora. Eu queria que houvesse algo com que eu pudesse comparar seus
olhos, porque dizer que são azuis e que são lindos não me parece o suficiente.
É o céu de um minuto específico do dia refletido em águas escuras. É a visão
única de um pintor impressionista.
— Envergonhada — respondo, porque,
de alguma forma, não consigo evitar essas coisas de saírem espontaneamente da
minha boca. Não tenho diante dele o mesmo controle que tenho diante dos outros,
e isso me assusta um pouco.
— Por quê? — ele questiona,
inclinando a cabeça daquele seu jeito que já me é tão familiar.
— Por ontem. Por hoje também. Porque
nunca ninguém me viu desabar como eu fiz diante de você na noite passada. E
porque você sabe que minha gripe é um
exagero, que eu podia perfeitamente estar trabalhando agora.
— Eu vi você ontem, Luz. Você de
verdade. E você não deveria se envergonhar de ser vista. Quanto ao resto, eu
não me importo.
Ele realmente me viu, não foi? E
esteve ao meu lado. Eu estava tão vulnerável que todos os sentimentos que
escondo e compartimento o tempo todo estavam à mostra para quem conseguisse
enxergar, e eles são a verdade essencial sobre quem eu sou. Eric pode não saber
de toda a verdade, mas, de certa forma, ele sabe mais sobre mim do que quase
todas as outras pessoas.
— Obrigada por você estar lá. Eu não
teria conseguido sem você.
— Bem, sempre que precisar de alguém
para te agarrar num canto escuro pode dispor da minha companhia.
Ele diz isso de um jeito bem
humorado, como uma piada para quebrar a tensão, acho, e eu rio. Mas não é
realmente engraçada a maneira como meu coração saltita quando a imagem vem à
minha cabeça, e ainda menos porque a sensação fantasma daquele abraço não me
abandonou um segundo sequer desde que aconteceu. De uma forma confusa e ao
mesmo tempo inequívoca, aquele é meu lugar no mundo. E era ali que eu estaria
neste momento se soubesse como agir. Mas não é como se eu entendesse o que se
passa realmente na cabeça de Eric, o que ele deseja de mim. E também não é como
se eu fosse uma mulher comum.
Não há regras quanto a isso, quanto
a se apaixonar. Não há regras quanto a nada, na verdade. Mas o amor é uma coisa
complicada para gente como eu. Ele nos deixa vulneráveis, humanos demais por
quanto divino é o sentimento. Quanto mais nos deixamos arrebatar, quanto mais
perto dessa felicidade perfeita, mais difícil é sair de dentro de si para
pensar somente nos outros. Além de tudo, ter que mentir para quem se ama seria
muito difícil, tanto quanto contar a verdade. É por isso, e pela impossível
tristeza de ver essa pessoa envelhecer enquanto nós permanecemos os mesmos, que
é tão difícil ser quem somos e amar ao mesmo tempo.
— Você é diferente, Luz — Eric
interrompe meus pensamentos. — Eu percebi isso por causa do quanto você ficou
triste por causa de sua amiga. E venho notando outras vezes também. Você se
importa demais. Sofre demais. Você é boa. Limpa. Então parece que sangra mais
quando te ferem. Esta sujeira toda que é este mundo não é pra você.
Ele estende uma das mãos e segura
uma mecha de meu cabelo, brincando com ela entre os dedos e prendendo meus
olhos nos dele. Estou tão hipnotizada que perco um pouco de meu receio e toco
em seu rosto, deixando meus dedos roçarem a pele macia e recém barbeada. É tão
bom quanto eu pensava.
— E às vezes eu me questiono... —
ele diz, mas se interrompe antes de começar a se abrir. Por que ele sempre faz
isso?
— O quê? — incentivo, mas é tarde
demais, ele já se escondeu de mim. Está apenas concentrado em meu rosto e na
mecha de cabelo com que brinca. No entanto, preciso que ele fale comigo, que
diga qualquer coisa. — Por que você me chama assim? Por que você sempre me
chamou de Luz quando estamos sozinhos?
— Exatamente pelo que eu disse. Boa.
Limpa. Pura. — Ele para de brincar com meu cabelo e sua mão segura a minha,
interrompendo sutilmente minha carícia em seu rosto.
Ele desvia os olhos dos meus por um
segundo e vira-se ligeiramente, depositando um beijo em minha palma antes de
deixar minha mão sobre minhas próprias pernas. O vínculo do toque está mais uma
vez rompido, como se, assim como eu, ele não soubesse lidar com toda esta
eletricidade.
— Como está sua cabeça? — ele
pergunta, tentando de forma mal disfarçada mudar de assunto.
“Confusa. Em chamas”, quero
responder, mas sei que ele está perguntando sobre a minha dor. Só agora me
lembro dela, então acho que não era nada tão forte que eu não pudesse
trabalhar. De fato, está um pouco melhor, porque o comprimido está fazendo
efeito e, embora ainda esteja dolorida, eu me envergonho novamente por ter
usado isso como desculpa para ficar em casa.
— Melhor, mas eu acho que seria bom
eu comer alguma coisa para ajudar. Do que você gosta? Janta comigo?
— Você vai cozinhar para mim?
— Por que não?
— Não sei, pensei que você estivesse
indisposta. Mas é claro que gostaria. Uma noite normal para nós, trabalhadores
noturnos, só para variar.
— Você não se importa mesmo de eu
ter faltado ao trabalho hoje?
— Ah, baby, relaxe! Todo mundo
precisa disso de vez em quando. Eu também não fui trabalhar hoje e não vejo
você me dando bronca — ele brinca. E só então me dou conta disso. Ele me deixa
tão tonta que eu nem tinha reparado.
— É mesmo. Por quê? Você também não
parecia nada bem ontem, sua falta tem alguma coisa a ver com isso? — sondo.
— Eu estou aqui porque tive vontade
de ver você. É só.
A resposta me aquece por dentro, mas
sua expressão se fecha e eu já o conheço suficiente para saber que ele não vai
me dizer nada mais que isso. Não me dou o direito de me importar com essa
recusa, entretanto, porque eu também não quis e nem quero falar sobre o que
aconteceu comigo ontem. Só espero que algum dia seja mais fácil nos abrirmos um
com o outro.
— O que você disse para Samuel? —
Não quero que ele se feche de vez, então tento mudar um pouco de assunto.
— Disse que ia tirar uma folga hoje.
Por quê?
— Porque ele deve ter estranhado,
você nunca tirou nenhum dia de folga, desde quando começou. Então eu pensei...
— Ele não é meu sócio, Clara, é meu
funcionário. Não tenho que dar satisfações a ele.
— Certo. Desculpe.
Ele fecha os olhos com força e
suspira, correndo a mão pelos cabelos um pouco nervosamente.
— Não, não precisa se desculpar. Eu
só não estou acostumado com perguntas, é isso. Mas eu prometo me comportar
melhor em sua casa, Luz. — Ele ri um pouco quando diz essa última parte. Então
fica sério de novo e seus olhos ganham aquele aspecto ferido que têm às vezes.
— Você me faz sentir tão bem. Em paz. E eu não quero estragar isso. Acha que
posso aproveitar sua companhia por esta noite? Se eu for bonzinho? — Ele sorri
de novo, brincalhão, e toma minha mão entre as suas. — Por favor?
— Acho que você é bonzinho o
suficiente — brinco também.
— Não, eu não sou. Mas posso ser só
por esta noite.
— Você me faz bem também. Muito. — Ele
ainda tem minha mão entre as suas e nossos corpos começam a se aproximar quando
digo isso. É simplesmente impossível me conter agora. Uso minha mão livre para
correr meus dedos pelos cabelos escuros dele. Eu sempre quis fazer isso, desde
o primeiro dia, e meu coração fica acelerado com os sentimentos que esse
contato tão íntimo me desperta. — Gosto do seu cabelo. Sempre quis tocá-lo.
O
quê? Endoidou? Isso é coisa de se dizer? Só feche sua torneirinha de verdades
bobas antes que seja tarde.
E
eu realmente me sinto boba, mas Eric faz uma cara bonitinha e balança a cabeça
sob minha mão, esfregando-se em mim como um gato. É tão fofo que quase me
esqueço de meu coração prestes a enfartar por mil motivos diferentes.
— Eu gosto de muitas coisas em você,
baby — ele diz baixinho, enquanto começa a brincar com meus dedos, entrelaçados
com os dele. — Do seu rosto e desses olhos puros de criança grande que você
tem. Dos seus lábios, especialmente sem maquiagem. Parece mais você assim, sem
artifícios.
Ok,
ponto para quem te mandou deixar o gloss
de lado, hã?
Ele toca meus lábios com a ponta dos
dedos, sua voz é suave como um sussurro e é como se as palavras me acariciassem
por dentro. Meus olhos estão fechados quando sinto sua outra mão subindo pela
minha perna e minha pele se arrepia da cabeça aos pés.
Aí eu congelo por um segundo.
Meus olhos se abrem de súbito e os
dele estão tão perto que é necessária toda força que tenho para desviar o rosto
e emergir do oceano. A mão dele para seu caminho por minha coxa imediatamente e
ele encosta a testa na minha, respirando um pouco mais rápido do que antes, mas
não tanto quanto eu.
— Você não devia começar coisas que
não está disposta a terminar — ele diz com uma voz mansa e séria, mas suas mãos
acariciam de leve minhas costas, de um jeito que parece que estão tentando me
acalmar. Ou me descobrir. Pouso as minhas sobre o peito dele e posso sentir seu
coração batendo forte.
— Eu sei. É só que... não sei... não
sei como agir.
Idiota.
Estúpida. Tonta. O que você está fazendo?
Minha
mente está em polvorosa, como um carro de corrida desgovernado. Ela quer e ao
mesmo tempo não quer que eu deixe isso acontecer. Eu quero. Mas isso tudo é
rápido demais para mim. Sei que era só um beijo. Ou talvez não fosse. Mas eu
não sei o que fazer com o que estou sentindo. Ao menos minha respirações está
se acalmando. Um pouco.
— Isso não seria problema se você me
deixasse te conduzir. — Ele afasta um pouco o rosto do meu, mas olhar em seus
olhos faz tudo piorar, então olho para baixo, para minhas mãos que estão no
peito dele, sentindo-o subir e descer bem devagar agora.
— Será que você pode esperar por
mim? Esperar eu entender o que estou sentindo?
Ele ri, e não estou certa sobre como
me sinto sobre isso. Depois solta um suspiro pesado e me abraça antes de
responder.
— Às vezes o entendimento é
superestimado, porque... Merda! Estou me sentindo culpado agora. Você é mais
diferente do que eu pensava. E eu sou diferente quando estou com você.
Isso
é um “sim”?
Ele
não diz mais nada por um tempo e eu também não sei como interromper nossos
silêncios. Apesar de tudo, gosto disso. Gosto que ele não se incomode de ficar
em silêncio comigo. Estou mais uma vez abraçada a ele, minha cabeça acomodada
na curva entre seu ombro e o pescoço, quando ele volta a falar.
— Eu vi você com o garoto ontem.
Samuel e eu fomos lá fora para deixar umas caixas vazias que descartaríamos
hoje e vocês estavam lá. Abraçados.
Sim,
sou uma abraçadeira pelo jeito. E só isso. Vivo afastando os homens de mim e
depois me agarro a eles. Se bem que com Caio eu realmente precisava impedi-lo
de... Oh! Espere. Eric pensa que...
—
Não! Não. É você. É só você desde o começo. — Afasto meu rosto para poder olhar
para ele quando digo isso. Ele me olha de volta com olhos insondáveis, mas dá
aquele sorriso de lado de quando não faço ideia do que ele está pensando. Como
se alguma vez eu fizesse. — Com Caio... Teo... é algo diferente.
— E ele sabe disso?
— Agora sabe. Está tudo bem. Ele só
precisa de um tempo para se acostumar.
— O que é que você tem, hein? Como
consegue nos enrolar entre seus dedos e ao mesmo tempo nos fazer implorar por
isso?
— Eu não... Desculpe. Não é minha
intenção tornar as coisas mais confusas.
— Pare de se desculpar, Luz. Você
não devia se desculpar pelas coisas que faz bem. — Ele coloca um cacho de
cabelo atrás da minha orelha e suspira de novo. — Nem pelas coisas com que só
posso sonhar, por enquanto.
“Por enquanto?” Acho que isso é o
mais próximo do “sim” que vou conseguir chegar. Acho que significa que ele não
vai sair correndo atrás de alguém que não o afaste como se não o quisesse.
— Sabe o que devíamos fazer?
Devíamos sair. Vai ser mais fácil me comportar em público.
— Sair? Mas e o jantar? Uma noite
normal para trabalhadores noturnos, como você disse que queria?
— Ah, eu sei, baby! Seria ótimo, mas
acho que é melhor deixarmos para a próxima. Quem sabe quando eu tiver direito à
sobremesa?
— Mas você tem... Oh... — Entendi!
Mas que... —Eric!
— Tudo bem, tudo bem — ele diz, levantando
as duas mãos para mim num gesto de rendição. — Está vendo por que seria melhor
sairmos daqui?
— Ok. Acho que pode ser divertido
sair com você — digo, lançando-lhe um sorriso. A verdade é que está sendo
difícil demais manter minhas mãos longe dele o suficiente para minha cabeça
ficar no lugar. E isso é tudo muito confuso para mim. Ainda. — Só me dê um
minuto para eu pegar uma jaqueta. Só pra me proteger um pouco caso recomece a
chover.
Eric balança a cabeça em
concordância e começa a olhar em redor, passando os dedos pelas lombadas de
meus livros. O quarto onde meu casaco está é perto o suficiente para que eu o
ouça resmungar baixo, embora provavelmente não tão baixo quanto ele gostaria:
— Yes, take the jacket. Maybe it’s a good ideia you cover yourself a
little. You’re too damn hot in this dress. Way too much for your own good.[1]
Apoio
as costas na parede, fechando os olhos para conter a timidez que me ataca,
provavelmente tingindo minhas bochechas. Talvez eu devesse trocar o vestido.
Por outro lado, eu soube desde o primeiro dia que Eric seria meu salto de fé.
Eu simplesmente preciso acreditar que vou conseguir lidar com esse caminho
desconhecido.
Respiro fundo e checo meu reflexo no
espelho. O vestido está bom. É branco com detalhes discretos e não aparece nada
de mais. Se ele gosta do que vê, nós dois teremos que aprender a lidar com
isso. Olho para meu gloss em cima da
cômoda e o deixo lá. Dobro a jaqueta e a coloco sobre a bolsa que penduro em um
dos ombros. Não vou me cobrir de vergonha e não vou usar “artifícios”, como ele
disse. Vamos apenas nos encontrando no meio do caminho, conforme o seguirmos.
Quando volto para a sala, decido entrar na brincadeira.
— Ei, Eric?
— Hum? — Ele se vira para mim, com
cara de inocente.
— Este apartamento é pequeno, sabe?
E as paredes são finas. Finas demais para quem entende elogios em inglês.
— Uh, busted! — ele me diz com uma
cara de moleque levado pego em flagrante. — But, well then, I won’t apologize
for the truth.[2]
Um sorriso lascivo escorrega pelos
lábios dele e encontra pouso nos meus, e eu constato com surpresa que gosto de
como isso me faz sentir. E enquanto ele me conduz pela porta, estou vividamente
ciente da mão dele espalmada em minhas costas, entre as omoplatas, em contato
direto com a pele que o tecido não cobre, e um arrepio bom percorre meu corpo.
A mão desliza um pouco, de maneira
que seus dedos longos envolvem meu ombro e ele me puxa para mais perto de si.
Estamos andando lado a lado, um braço dele ao meu redor como se fôssemos um
casal. Subitamente, estou mais feliz do que achei que fosse possível. E estou
mais uma vez no topo da montanha-russa. Só me resta agora esperar por uma boa
descida.
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