Capítulo 24 — As Duas Pontas da Conversa
Ever
wonder 'bout what he's doin'
How it
all turned to lies
Sometimes
I think that it's better
To
never ask why
(…)
Funny
how the heart can be deceiving
More
than just a couple times
Why
do we fall in love so easy
Even
when it's not right
Where
there is desire there is gonna be a flame
Where
there is a flame someone's bound to get burned
But
just because it burns doesn't mean you're gonna die
You
gotta get up and try, and try, and try
(Try
– Pink)
Então nós nos beijamos. E eu não
consigo pensar em outra coisa.
Sempre tive esta tendência a pensar
demais, mas algumas vezes na vida só o que você pode fazer é se render aos
fatos. E o fato é que, desde que pousei meus olhos em Eric, eu soube que havia
uma história escrita para nós.
Tem uma coisa que sinto em meu
coração quando estou com ele. Um conforto inexplicável. Mesmo quando meu corpo
reage ao dele com um desejo desconhecido e assustador para mim. Mesmo quando
seu jeito inconstante faz com que qualquer um de seus mínimos gestos defina meu
dia para bem e para mal. Eu sinto, desde o começo, que ele já estava ali. Que a
parte de meu coração que se aquece e se conforta cada vez que ele se dá a
conhecer está, na verdade, reconhecendo-o.
E quando os lábios dele tocaram os
meus, foi um gesto de rendição. Foi como se nós dois tivéssemos voltado para
casa. E foi tão verdadeiro, tão íntimo e puro, que, desde então, não tenho
outra coisa em minha cabeça. Meu corpo se recusa à lembrança de qualquer outra
sensação que não seja o carinho de lábios finos, macios e quentes sobre os
meus. Minha tez ignora o calor do sol, em favor do ardor das mãos dele sobre
minha pele úmida pelas gotas da chuva que caía fraca sobre nós, suave e
persistente como a memória daquele toque.
Uma coisa completamente evidente
para qualquer um que se dê ao trabalho de me conhecer é que quando os
sentimentos são muito intensos para mim, do tipo que não consigo empurrar para
um canto obscuro da minha mente e ignorar até que meu coração possa
processá-los, há um único mecanismo de defesa a que recorro. Eu durmo. Muito.
Como gente que fica na cama até as quatro da tarde!
Entretanto, não pude dormir essa
noite. E isso tem menos a ver com o fato de que passei o domingo quase todo
recorrendo ao meu velho remédio — e, portanto, não estava mesmo cansada —, do
que com a sensação que me invade vividamente quando fecho os olhos. Ou mesmo
com a visão que me persegue quando os abro.
Olhos de oceano.
Quando ele me olhou, com o rosto
ainda tão perto do meu que nossa respiração era uma só, eu senti que havia
coisas mudando dentro dele também. Como se a intensidade daquele sentimento não
fosse algo novo apenas para mim, e nós dois estivéssemos reaprendendo a
respirar na atmosfera um do outro, do nosso próprio mundo separado do resto.
Blue, no entanto, está alheio a
todas essas coisas. Testemunha involuntária do meu arrebatamento, ele tem
questões mais prementes com que lidar. Questões que eu, como sua nova “mãe”, é
que tenho que resolver para ele.
Ontem à noite, quando chegamos, a
primeira coisa que fiz foi alimentá-lo. Dei a ele um pouco de leite e o que
tinha sobrado de uma refeição minha do dia anterior, já que eu, obviamente, não
tinha ração de cachorro em casa. Não era algo atraente para cachorros, já que
não como carne, mas foi o suficiente para que ele ficasse feliz da vida e eu
também, por vê-lo satisfeito. Depois o limpei o máximo que pude com um pano
úmido, sequei e improvisei uma cama com um lençol velho dentro de uma caixa.
Com o estômago cheio, parcialmente
livre dos desconfortos da sujeira e a salvo dos perigos de dormir ao relento, ele
descansou quase imperturbavelmente até agora de manhã, mas assim que a vida lá
fora retomou seu ritmo, ele despertou junto com ela, descobrindo os detalhes de
seu novo ambiente.
Fico observando enquanto ele fareja
tudo até que me descobre. “Ah, você é a moça que me tirou da chuva, não é?
Obrigado pelo jantar!”, é o que seus pulos e lambidas parecem dizer. “Por nada.
Obrigada pela companhia”, meus afagos respondem. “Vamos brincar”, ele completa,
sem se importar muito com a coceira insistente que o obriga a parar de minuto a
minuto. Preciso dar um jeito nisso. E em todo o resto também.
Então decido levá-lo ao veterinário
do bairro, não sem antes dar um banho de verdade nele e localizar todos os
pequenos ferimentos que quero que sejam checados. Eu já tinha estado nesta
clínica há uns meses, quando dei carona a uma vizinha que precisou socorrer seu
gatinho intoxicado por uma planta, e quando vejo o veterinário, Dr. Alexandre,
fico contente em me lembrar que ele é experiente, atencioso e gentil.
Ele deve ter em torno de 50 anos e
está começando a ficar grisalho, o que só torna suas feições mais agradáveis.
Tem jeito com os animais e uma energia abençoada que deixa todos tranquilos à
sua volta, incluindo os donos assustados como minha pobre vizinha. Sem demora,
ele examina Blue com todo cuidado, estimando que ele tenha cerca de cinco meses
e nenhuma doença, exceto um pouco de anemia que pode ser tratada com doses de
Ferro.
Meu novo amigo — porque é assim que
quero pensar no Dr. Alexandre — medica os ferimentos de Blue, dá suas
recomendações, e em pouco tempo estou saindo de lá com as promessas de que ele
estará ótimo em poucas semanas de bons tratos. Minha conta desta manhã inclui
vacina, vermífugos, remédios para pulga, pomadas, Ferro, brinquedos, ração, uma
cama e produtos de higiene apropriados.
É mais do que eu estava preparada
para gastar, mas não me importo. Estou feliz por estar fazendo o bem e
adquirindo uma família no processo. Minha mãe e meu pai, que adoravam
cachorros, ficariam contentes com isso, e gosto de pensar que eles podem me ver
lá de onde estão e se alegrarem comigo. Quanto ao dinheiro, posso economizar em
outra coisa e tudo vai ficar bem. O importante é cuidar da minha família.
Ainda estou toda orgulhosa de mim
mesma, com Blue contente ao meu lado, andando sem coleira mesmo, quando
chegamos ao corredor do meu apartamento. Ele nota primeiro que eu a caixa
branca em frente à porta e corre para cheirá-la, enquanto minha cabeça se enche
de quantas perguntas pode haver no espaço dos três ou quatro passos que me
separam da resposta.
Quando chego perto, há uma rosa
vermelha e solitária sobre a caixa que recolho imediatamente, antes que Blue
pense que se trata de comida ou brinquedo, o que não faz muita diferença para
seus dentes novinhos e seu focinho curioso.
Fico me perguntando de onde aquilo
saiu, se é mesmo para mim e como foi colocado ali, mas sei a resposta o tempo
todo. Eric. Minha certeza não tem muito sentido, mas meu coração disparado não
se importa muito com isso, porque quando pego a caixa sinto o cheiro dele e é
como se ele estivesse ali, tocando meu rosto de leve com seus dedos macios e
sua alma solitária como a rosa que ele deixou para mim.
Com um sobressalto, varro o corredor
em busca dele, mas meu coração afunda um pouco no peito quando percebo que não
há ninguém ali além de mim e de Blue. Quando abro a caixa, encontro um bilhete
escrito numa caligrafia econômica e masculina, mas ainda assim bonita:
Sua nova jaqueta, como prometido.
Queria eu mesmo aquecer você, mas por ora isso
deve servir.
Obrigado por me fazer acreditar.
Antes de sucumbir àquelas palavras
ou ao calor que toma meu corpo e meu coração de assalto, espalhando-se com a
urgência do próprio sangue que me mantém viva, retiro da caixa uma jaqueta do
tamanho exato da que eu vestia ontem e do mesmo estilo, mas muito mais bonita
do que a minha. Não me importo realmente com isso, mas sim com a imagem dele
escolhendo algo para mim com tanto carinho e dedicando seu tempo a me
surpreender.
Não foi apenas um beijo para ele também.
Foi uma promessa que fizemos um ao outro. Uma promessa em que ele acreditou e
que eu cumpriria sempre, agora com o sentimento leve e feliz de saber que,
nessas horas em que minha mente esteve escrava daqueles instantes junto a ele,
Eric pensou em mim também.
******
— Oh, meu Deus! Ele é uma gracinha!
— Paty exclama entusiasmada quando Blue começa a pular nela e a correr pela
casa com uma bolinha na boca, chamando-a para brincar.
Ela chegou logo depois do almoço,
como tinha prometido, para checar como eu estava, e me encontrou a mais feliz e
animada das criaturas. Num gesto juvenil e excessivamente romântico, eu
coloquei o bilhete de Eric no bolso do jeans que estou usando, e a todo o
momento deixo meus dedos brincarem sobre ele como um lembrete de que aquilo
tudo é real. É o que faço enquanto observo minha amiga e meu cachorro se
divertirem juntos e penso no quanto eu queria que Eric estivesse aqui também.
Sim, eu sei, sou uma boba e é
ridículo já estar com saudades dele, mas eu estou. Tentei ligar algumas vezes
para agradecer, mas o número que tenho — aquele com que ele me ligou ontem à
noite — parece estar desligado ou fora de área.
Estou tentando não pensar que isso
significa alguma coisa, o que está sendo fácil, considerando que ele não teria
por que evitar um simples telefonema que eu nem faria, se não fosse para
agradecê-lo pelo gesto de hoje de manhã. Isso, no entanto, não impede que ele e
as horas que passamos juntos tomem posse quase irrestrita de meus pensamentos
conscientes, e dos inconscientes também.
— Eric disse que ele era feio, mas
eu também o achei uma gracinha logo de cara.
Oh-oh!
No mesmo momento em que digo isso —
aliás, antes mesmo das palavras terminarem seu caminho para fora de minha boca
— percebo o tamanho da besteira que acabei de fazer. Isso é o que dá não tomar
conta de seus próprios pensamentos! Queria poder puxar as palavras de volta
para dentro, mas, obviamente, isso não é possível.
E quase tão impossível quanto é que
Paty vá ignorar meu deslize. Ao contrário, ela vira o rosto para mim na hora.
De repente, ela é toda ouvidos e olhos semicerrados, na sua mais pura expressão
de “peguei você, agora desembucha”.
Droga!
—
Foi ontem à noite que você encontrou este cachorro? — pergunta minha amiga. E
eu sei exatamente onde ela vai chegar com esse joguinho, posso prever cada
movimento seu, mas não tenho mais como fugir.
Queria proteger meu sentimento por
Eric mais um pouco e, acima de tudo, não queria falar sobre ontem. Aquele
momento pertence a nós dois e não me sinto no direito de dividi-lo com outra
pessoa que não seja ele. Acho que quando se vive uma vida de segredos, você
acaba se viciando na sensação de guardar tudo para si.
No entanto, Paty é minha amiga. Ela
é. De verdade. Além de tudo, não é boba. Ela sabe muito bem o que está
acontecendo comigo e, certamente, o fato de que Eric não foi ao bar ontem não
lhe passou despercebido. Para falar a verdade, não sei como ela não me ligou
ontem mesmo. Tipo, umas cem vezes.
Mas, não, ela não me ligou, e está
aqui agora, provavelmente esperando que eu fale sobre isso com ela sem que seja
necessário que as informações que julga seu direito de amiga saber sejam
extraídas cirurgicamente. Eu só não sei como se faz isso. Não sei como se conta
esse tipo de coisa a alguém. Como disse, passei tempo demais escondendo tudo
dos outros. Então opto por simplesmente responder as perguntas dela com
sinceridade.
— É, eu encontrei o Blue ontem, saí
para jantar e o encontrei na volta.
— Aham, sei. E isso foi depois de
você me avisar que ia faltar ao trabalho porque estava doente. Aí você arrastou
sua dor de cabeça para um restaurante. Sozinha, provavelmente, porque é isso
que a gente faz quando está se sentindo mal. Não que eu esteja insinuando
alguma coisa!
Deus
nos livre de insinuações quando ela pode falar na lata!
— Eu não menti, Paty! Estava mesmo me sentindo mal, mas depois tomei
um analgésico e comi alguma coisa, como você sugeriu, e fiquei bem.
— Isso é bom — ela diz
pensativamente, depois repete a frase num tom meio professoral que soa muito
estranho na voz dela. — Isso é bom. Mas você sabe que eu não me importaria
realmente se você tivesse mentido e seu mal-estar fosse apenas uma desculpa
para “matar” o trabalho, né? Porque, assim, não é como se eu fosse sua chefe.
— Eu não menti...
— E não é como se nosso chefe se
importasse também... — ela me interrompe, elevando a voz apenas um pouco acima
da minha. — Afinal, ele próprio não apareceu para trabalhar ontem à noite. O
mesmo chefe que viu o cachorro ontem, certo? Aquele por quem você anda babando
por aí e com quem você some convenientemente de vez em quando.
— Sim, Paty — suspiro derrotada. —
Se é o que você quer saber, Eric esteve aqui para ver como eu estava e...
— P-p-para. Tudo. — ela coloca as
duas mãos diante de meu rosto e gagueja propositalmente. Paty tem um jeito meio
teatral, o que é engraçado. Sempre gostei de gente que fala com as mãos. Faz eu
me lembrar do meu pai e de Beto. Estou sorrindo quando ela continua. — Ele
esteve aqui? — Mais uma vez, ela fez um movimento amplo com as mãos, girando
ambas para circular o ambiente em que estávamos. —Tipo... Ontem à noite, você e
ele, aqui? Você está dizendo que vocês...
— Não, Paty! Não é assim! Somos só
amigos.
Eu acho.
Na verdade, não sei bem o que nós
somos, mas não creio que eu possa decidir isso sozinha. Sendo assim, apenas
para efeito de explicações temporárias, “amigos” cobre uma boa base.
— Ah, conta outra, Clara! O clima
que rola entre vocês não é de amizade. E Eric não é o Teo, amiga. Ele não é o
tipo de cara que aceita ficar amigo de uma mulher de quem esteja a fim. Ou ele
vai insistir e te cercar até conseguir ou desistir e partir para outra.
Desistir e partir para outra.
As palavras ficam rolando pelas
paredes de meu estômago e provocam um enjôo irritante. É possível que ele se
canse de mim, que isto tudo que sinto não signifique a mesma coisa para ele.
Mas não quero pensar nisso. Não hoje. Nem enquanto eu puder evitar. Sempre
achei que inseguranças tolas não têm outra utilidade, a não ser estragar coisas
perfeitamente boas. Além do mais, Eric concordou em respeitar o meu tempo.
Embora eu ainda tenha que descobrir que tempo é esse.
— Eu sei disso. Mas nós... Só
estamos vendo como as coisas ficam. Eu acho.
— Então, se você está querendo ir
devagar, convidá-lo para vir à sua casa passa a mensagem errada, não acha?
— Hã, eu não convidei – digo, um
pouco espantada, porque pensei que isso fosse tão óbvio que nem valesse a pena
mencionar. — Ele apareceu de surpresa.
Eu nem sabia que ele tinha meu endereço.
— Ele o quê!? E você está achando
isso normal? — Tão normal como seu desejo
de controlar minha vida! — Espera aí, deve estar aqui em algum lugar... —
Ela começa a procurar alguma coisa pelo chão e fico sem entender, porque não
percebi nada caindo.
— O que foi? O que você está
procurando?
Ela nem olha para mim quando faço a
pergunta. Em vez disso, continua a busca e me responde distraidamente.
— Meu queixo. Deve estar por aqui em
algum lugar. — Sério. Às vezes eu me
pergunto como tolero isso. — Ah, achei! Está ali no cantinho, jogado junto
com seu bom senso. — Como? Como? —
Branquinha, o cara descobre seu endereço, vem até a sua casa de surpresa e você
acha lindo ele ser uma droga de um perseguidor?
Perseguidor!?
Mas que exagero despropositado é esse?
Tenho
um momento para me questionar como foi que ele passou pela entrada principal e
deixou um presente em minha porta sem ter uma chave do prédio, mas prefiro
pensar que algum vizinho romântico — mais certamente alguma vizinha para quem
ele jogou charme — deixou que ele entrasse e depois fosse embora sem ser
percebido. Pensando bem, é bem provável que tenha sido assim e seria bem fácil
de descobrir simplesmente perguntando a ele, por exemplo.
De qualquer forma, estou engajada em
combater a campanha anti-Eric que Paty vem empreendendo desde sempre, então não
acho que seja um bom momento para contar a ela sobre hoje de manhã. Neste
instante, estou mais ocupada ficando irritada com o jeito que ela fala dele o
tempo todo como uma “chave de cadeia”, como ela diz. Acho que só tolero isso
porque... porque... Bom, porque eu adoro essa menina! Mesmo assim, não posso
deixá-la pensar que pode controlar de quem eu gosto.
— Pois não venha com essa você, Paty! — contra-ataco. — Se fosse
qualquer outro cara, você acharia romântico ele ter se preocupado comigo e
vindo até aqui para ver como eu estava. Você só levantou essa história de
como-é-que-ele-tem-seu-endereço, porque estamos falando do Eric, e você não
gostava dele antes mesmo de conhecê-lo!
Paty ainda tem as sobrancelhas
arqueadas e sua fina expressão de desdém no rosto, mas nós duas sabemos que
agora isso é só parte da cena, porque ela já estaria dando pulinhos de
empolgação se outro homem, um que ela aprovasse
— ah, a prepotência disso! —, estivesse no lugar de Eric, e ela desconfiasse
que rolou algum “romance” entre nós. Sendo assim, aproveito a sorte de ter
acertado no argumento e continuo:
— Talvez você devesse superar o fato
de ele ter conseguido o bar numa aposta e dar uma chance a ele. Porque a
verdade é que ele tem sido bom para nós, e as coisas estão melhores do que
antes, no fim das contas. Pelo menos o bar não vai mais fechar.
— Mas... — Ela abre a boca várias
vezes, tentando encontrar uma boa maneira de responder a isso, porém no fim não
encontra e solta um suspiro derrotado e ligeiramente exasperado. — Tudo bem,
vai. Eu vou tentar. Principalmente porque agora ele vai ser seu namorado! — diz ela, cantando a última
palavra num tom provocativo e infantil.
Arg!
A outra abordagem!
Quando
os argumentos dela cessam, há sempre a possibilidade de me fazer sentir
desconfortável com constatações simplistas. Talvez eu seja muito complicada,
mas odeio quando as pessoas colocam coisas complexas em termos simples demais.
A
Senhorita Irritante sempre me vence de algum jeito!
—
Não, para! — digo, um tanto aborrecida. — Ninguém falou em namorado aqui. Não
como se fosse uma historinha simples da qual eu vou me arrepender e nós vamos
rir daqui a pouco. Do jeito que você fala faz parecer tão... Ah, sei lá! Banal!
De repente, ela olha para mim de um
jeito apreensivo. Alguma coisa no que eu falei, ou no jeito como falei, chamou sua atenção e fez com que seu semblante
ficasse subitamente sério.
— E não é nada banal, certo? Você
está realmente apaixonada por ele.
Não é um pergunta. Vejo os lampejos
de preocupação, aqueles mesmos que fazem com que às vezes ela pareça estar se
metendo na minha vida, passarem por seus olhos sinceros e perspicazes. Paty se
preocupa comigo de verdade. No fundo, mesmo que o jeito dela às vezes pareça contundente
e invasivo demais, eu sempre soube disso, e me enterneço por ela toda vez que o
quanto ela se importa fica assim evidente. Novamente, sinto que ela merece a
verdade.
— Eu estou apaixonada por ele, Paty.
Mais do que isso até. Nunca senti por ninguém o que sinto por ele. Eu o amo.
— Ah, droga! — A seriedade se
derrete no rosto dela como um sorvete que caiu no asfalto quente, e então ela
parece meio arrependida de alguma coisa. — E eu aqui tentando fazer você
desistir disso, porque achei que você estivesse se envolvendo numa situação
complicada só por causa de um tesãozinho básico. Mas apaixonada? Amor? Ah,
Clara! Você tem certeza?
Ela passa da poltrona onde tinha se
sentado quando parou de brincar com Blue para o sofá onde estou, olhando bem em
meus olhos enquanto espera pela resposta.
— Sim, eu tenho certeza. E eu sei
que você não consegue se livrar da sensação de que ele é encrenca, mas eu me
sinto como aconteceu com Blue, sabe? Já estou envolvida. No momento em que pus
os olhos nele eu sabia que nunca conseguiria virar as costas. Sei que tem
alguma coisa diferente nele. — Como o
fato de eu quase nunca conseguir sentir sua energia, por exemplo. — Mas
diferente não quer dizer que seja ruim.
— E se for? Você acha que pode
mudá-lo? Porque vou te dizer uma coisa, Branquinha, essa é a pior besteira que
a gente pode pensar quando se apaixona. Ninguém muda ninguém.
— Sim, eu sei, mas talvez eu possa
aceitar o que é diferente nele. Ainda não sei. E, de qualquer jeito, se ele me
quiser, mesmo que seja apenas como amiga, vou ficar do lado dele e ajudá-lo se
ele quiser mudar. Vou ficar enquanto ele deixar.
— Ah, merda! — Paty diz, afundando a
cabeça nas duas mãos, enquanto a balança em desaprovação. — Eu devia estar
morrendo de medo de você quebrar a cara, mas não estou. Às vezes você dá a
impressão de que sabe de coisas que os outros não sabem, eu já te disse isso?
Esta certeza que você tem na bondade das pessoas não é uma coisa saudável, mas
de algum jeito você sempre se safa nessas suas apostas. Então eu vou apostar em
você, porque... Ah! Porque isso é tão bonitinho! Você é bonitinha! — Ela me agarra num abraço de urso e,
subitamente, qualquer vestígio de irritação que houvesse em mim já se foi. — Se
você gosta dele, então nós gostamos
dele, ok? Eu vou dar um jeito de me acostumar. Só que eu vou sempre gostar um
pouco menos, porque assim posso quebrar a cara dele sem culpa, caso o
engraçadinho se atreva a estragar tudo.
Começo a rir e afundo um pouco mais
no abraço dela. Ela é só uma menina espevitada, mas é tão certa de sua força
que eu nunca ousaria duvidar que ela enfrentasse qualquer um para me defender.
Não sei por que ela gosta tanto de mim, mas não acho mais que possa me defender
do amor que sinto por ela também.
Blue começa a pular em nós, tentando
se juntar ao abraço, então ela me solta para pegá-lo no colo e continua a
conversa num tom completamente diferente agora, mesmo que esteja agindo como se
nada de totalmente fofo, como o abraço que me deu, tenha acontecido.
— Mas só que, vamos combinar, você
não me engana com essa coisa de só amigos. Vocês sumiram no sábado e saíram
juntos ontem. Alguma coisa rolou!
— Bom, você sabe como Eric é fechado
e trata todo mundo daquele jeito meio seco...
— Exceto você.
— É... Não... Quer dizer, às vezes
eu também. Mas o caso é que eu pensei que ele não estivesse interessado, aí
sábado a gente conversou, não sobre isso, sobre outras coisas, mas o jeito dele
estava diferente e eu achei que talvez... Sei lá. Talvez ele estivesse a fim
também. Aí ontem ele apareceu aqui e foi todo atencioso comigo, me convidou pra
jantar e a gente conversou mais um pouco.
— Ah, meu Deus! Por que é tão
difícil você me contar as coisas que eu realmente quero saber? Que vocês
conversaram eu já sei, agora vá direto ao ponto que interessa: vocês ficaram?
Tenho certeza de que estou vermelha.
Não pensei que fosse tão difícil falar sobre isso, mas eu me sinto como se a
informação estivesse realmente sendo extraída cirurgicamente. Como uma espécie
de apêndice do qual não quero abrir mão.
Qualquer coisa que eu diga jamais
chegará perto do que realmente significou para mim a noite de ontem. Não foi só
um beijo. Foi o meu primeiro beijo. E
a culminância de momentos ao mesmo tempo tão vagos e tão decisivos, mas
sobretudo maravilhosos, ao lado do homem que amo. Eu, que nunca achei que fosse
amar alguém. Como posso dizer isso a ela? Não há palavras que caibam numa
resposta simples.
Mas, por outro lado, posso dar
apenas a resposta à pergunta que ela fez e, pela primeira vez em muito tempo, não
preciso mentir nem manipular minha resposta. A verdade não precisa ser
complicada quando a pergunta é simples.
— Ele me deu um beijo quando me
deixou em casa.
Pronto. Não foi tão difícil. Na
verdade, eu me senti bem dizendo isso. “Ele me deu um beijo quando me deixou em
casa”. Hum, acho que posso me acostumar a dizer essas coisas. Soa bem e faz meu
coração bater num ritmo um pouco acelerado, mas bom.
A reação de Paty, no entanto, não é
a que eu esperava. Eu achei que ela fosse ficar animada e zombar de mim por ter
tido vergonha de contar, ou mesmo que fosse voltar a dizer que eu perdi o juízo
e aquela história toda, mas ela apenas sorri, depois parece se lembrar de
alguma coisa que a faz ficar séria.
— Teo já sabe? — ela pergunta, e
então eu entendo. Ela está preocupada com ele.
Ela sempre está preocupada com ele.
Acho que ela sente mais do que confessa e eu adoraria que desse certo, mesmo
que isso significasse que talvez Caio tenha que optar por um caminho diferente
do meu, mas não ouso incentivar o sentimento de Paty enquanto ele ainda achar
que está apaixonado por mim.
— Mais ou menos. Ele meio que
adivinhou, mas isso foi antes do beijo.
Beijo. Beijo. Beijo. Nosso beijo.
Meu e de Eric. Gosto de ficar repetindo isso em minha cabeça. E, sim, eu sei
que sou uma tonta. Minha mente malcriada nem precisa me lembrar disso. Estou
feliz, ela que se conforme que eu fico boba também.
— Hum, isso explica — diz Paty,
pensativa.
— Explica o quê?
— Bom, ele não sabia que você não
tinha ido trabalhar ontem, então foi até o bar te procurar. Eu achei que ele
fosse vir aqui quando eu disse que você não estava bem, ou pelo menos te ligar,
mas quando ele percebeu que Eric também não estava, desistiu.
Ah,
meu Deus!
Subitamente, a felicidade
embasbacada e tola que eu estava sentindo se recolhe num cantinho do meu
coração e dá lugar a uma dorzinha aguda e insistente, que vai crescendo mais e
mais na medida em que sou obrigada a imaginar Caio lidando com aquilo com que
ele, no entanto, precisa lidar. Ele precisa
me esquecer, ainda que tenha que sofrer no processo. Isso, porém, não
significa que eu não me entristeça por magoá-lo.
— Como ele ficou, Paty? Como reagiu?
— Você ficaria muito decepcionada se
eu dissesse que ele não ficou tão triste? Quer dizer, deu pra ver que ele ficou
um pouco chateado no começo, mas depois acho que ele foi ficando bem.
Decepcionada?
Será que Paty acha que sou tão vaidosa assim?
— De jeito nenhum. Eu ficaria feliz.
Tudo o que eu mais quero é que ele fique bem.
— Hã, e importaria muito com quem
ele ficasse... bem?
Será
que ela está perguntando o que acho que está perguntando?
— O que você está querendo me dizer?
— Bom é que... é... eu fiquei um
tempão conversando com ele ontem, sabe? O movimento estava tranquilo e eu
fiquei no bar substituindo Eric na maior parte do tempo. Nós ficamos juntos
durante quase toda a noite até ele ir embora, porque ele não tinha com quem
conversar, mas não parecia a fim de voltar pra casa ou sei lá pra onde ele
iria. Então eu fiquei pensando... acho que gostei um pouco demais de ficar
junto com ele.
Rá!
Quantas vezes eu já estive na outra ponta de uma conversa constrangedora com
Paty? Exatamente o número que você pensou: nenhuma! É melhor eu aproveitar.
—
Paty, você está me dizendo que está apaixonada pelo Teo?
Ela arregala os olhos numa expressão
pretensamente assassina, mas eu sei que ela só foi flagrada numa verdade em que
não quer aceitar. Então ela não vai deixar que eu a diga assim, tão
diretamente.
— Claro que não, né? Eu já disse que
Patrícia Moraes não se apaixona. Já vi as pessoas sofrerem demais por causa
dessa bobagem de sentimento. Então, não. Mas eu acho ele gostoso e estou a fim
dele. Isso eu confesso. Pronto. Falei. Já que vocês não vão ficar juntos mesmo.
— Não, não vamos. — Embora não me agrade ouvir você falar dele
como se fosse um objeto. Se eu não soubesse que isso é da boca pra fora... —
E ele? O que acha desses seus planos?
— Ele ainda não sabe — ela brinca,
dando uma piscadinha para mim —, mas eu sou o número dele. Espera só ele esquecer
você de vez!
Caímos na risada e minha felicidade
tonta está de volta. Não sei se Paty e Caio ficarão juntos ou se é só mais uma
das paixões temporárias dela. Não sei o que ele vai decidir ou como vai reagir
quando confrontado com suas escolhas, mas não consigo me preocupar com isso. De
um jeito ou de outro, sinto que tudo vai ficar bem. E, por ora, posso apenas
aproveitar o momento com minha melhor amiga.
É uma situação surreal essa, mas
acho que esta é a conversa mais normal que eu já tive na vida. E a sensação é
infinitamente boa.
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