sábado, 8 de agosto de 2015

Bônus ELS


Capítulo Bônus 
Paralelo ao capítulo 27 - Jogos de Paixão

por Eric


I will save
You from yourself
Time will change
Everything about this hell

Are you lost?
Can't find yourself
You're north of heaven
Maybe somewhere
West of hell

(Birth – 30 Seconds To Mars)


            Estou acostumado à raiva. Ela me mantém vivo, corre no meu sangue e me move adiante. É assim que sobrevivo. É o tipo de coisa desprezível que sou.
            Não me importo e nem me surpreendo quando a ira borbulha dentro de mim, mesmo que eu a venha mantendo escondida, como se pudesse ser o “menino bonzinho” que ela deseja. Talvez até por isso.
            Eu não sou o que ela quer, não sou o que ela pensa. Mas eu a desejo. Estranhamente. Com todas as minhas forças. E esse é o tipo de coisa que me faz querer quebrar meus próprios ossos contra a parede. Ou os de alguém. Como os desse pulso frágil que seguro entre meus dedos. O impulso é quase tão cortante quanto o desejo que sinto de levá-lo aos lábios e beijar a pele quente e macia desta mulher que me perturba. Cada centímetro dela. E depois...
            Tenho vontade de machucar alguém. Mas não o faço. Tenho vontade de possuir esta mulher até que não reste mais nada entre nós para queimar no fogo desse sentimento desconhecido. Mas apenas espero que ela não me odeie. Tenho vontade de ser o tipo de homem que merece ser olhado como ela me olha. Mas sei que não há coisas boas reservadas para mim nesta Terra. Essa é a história da minha vida e estou acostumado com ela.
            Quando tudo o que você é não significa nada para ninguém, você acaba se acostumando com a ideia. Como uma dor crônica que você aprende a ignorar.
            Mas então ela surge e faz a dor ir embora. E quando ela não está por perto, eu finalmente me lembro do quanto machuca. Sentir. Quase a odeio por isso. Por transtornar o que é natural em mim, por me transformar em algo novo com que sou obrigado a lidar. Ela não faz ideia, mas já me venceu.  Derrotou-me numa batalha que nem sabe que existe e não precisou fazer nada para isso, apenas me olhou como se eu merecesse.
            Eu a odeio por isso. Odeio porque a amo e isso é ridículo.
            Ela vai embora quando perceber o quanto tudo isso é patético, mas ainda terá tudo o que é quando não sobrar nada de mim. Porque não sou nada. Meios para um fim. Uma coisa amaldiçoada. Uma sombra trágica sob uma luz que não é para mim.
            Sei que é o que vai acontecer. Eventualmente. Mas simplesmente não consigo deixar que seja hoje. Preciso dela. Sem sua força não posso controlar a minha. E tudo isto, transtornar sua existência tranquila, colocá-la em perigo, deixar com que nossas almas se enredem de forma irremediável para nós dois, seria inútil se eu a deixasse partir agora.
            Mas essa não é a razão pela qual meu corpo estala em medo, cólera e dor quando ela me dá as costas, consumida por uma insegurança que ela nem imagina o quão absurda.
            Eu a fiz sofrer hoje. Depois me escondi, como o tipo de homem deplorável que tem medo de enfrentar a verdade por trás das ilusões dos outros. Não pude lidar com a raiva dela, não pude aceitar aquele velho sentimento que era tão novo naqueles olhos, e isso só piorou as coisas. Para nós dois.
            Sinto o amor em seu peito se contrair em uma bola de fúria silenciosa que ela me devolve através de seus olhos grandes e magoados e de seu patético ataque infantil. Tenho vontade de rir de sua tentativa pálida de ser combativa, de lidar com sentimentos com que, certamente, não está acostumada. Quase fico satisfeito com isso, com a forma como ela está provando de seu próprio remédio.
            Tenho vontade de rir, mas não o faço. Não há nada de engraçado em sentir quando ela sofre. Não de verdade. Não quando sei que seu amor ferido é uma ilusão, e isso só faz com que machuque mais.
            Eu sei o que quero dela, mas ela não sabe o que quer de mim e, no fim das contas, toda a frustração que ela me dirige se resume a isso: o que, afinal, estamos fazendo aqui?
            Bem, eu sei o que eu gostaria que estivéssemos fazendo aqui.
            Não posso evitar que meu corpo se transforme na prisão por que ela anseia. Sinto a excitação e o medo do desconhecido que emanam dela quando a fecho em meus braços, exigindo uma resposta.
            — O quê. Você. Quer. De mim?
            Não estou sozinho aqui. Meu corpo não está sozinho. Ela está nisso tão intensamente quanto eu. Sinto sua pele se arrepiar em resposta à minha língua que prova seu gosto. Muito levemente.
            Sinto as mãos dela me acariciarem. Parece ousado para ela, embora eu saiba o quanto ela quer. Em algum ponto entre tocá-la e ser tocado com tanto cuidado, começo a achar verdadeiramente excitante a ideia de torturá-la, puni-la por sua hesitação. Corro meus lábios pela pele macia de seu pescoço e sinto sua pulsação se acelerar sob meus dedos.
            — Não quero ser sua dona, Eric — ela diz. E como se sua voz baixa e entrecortada pelo desejo não fosse o suficiente para me cegar, as palavras são tão certas quanto seu cheiro doce e delicado invadindo minhas narinas.
            Tudo nela soa certo. Exato. Perfeito.
            — Resposta certa, baby — sussurro contra sua pele.
            Ela se encolhe quando minha respiração quente toca um ponto sensível que estive beijando e isso me faz querer mais. Meus dentes se fecham na curva de seu pescoço porque quero sua pele para mim. Quero estar em toda parte e senti-la em cada centímetro dentro e fora de mim.
            Um puxão fraco em meus cabelos vem a tempo de me impedir de cometer alguma loucura, mas ao me obrigar a olhá-la, tão frágil entre meus braços, tão à mercê desse desejo que não é só meu, ela apenas torna tudo ainda melhor.
            Se quiser ir devagar, ela vai ter que me parar. E algo me diz que vai ser tão difícil para ela quanto para mim.
            Quando a beijo, seus lábios não são a única coisa que toco. Seus sentimentos estão desnudados diante de mim, posso acessá-los com minha própria fome, sentir a força deles como se houvesse muito mais do que pele sob meus dedos. Com outras, nunca foi mais do que desejo para mim, mas agora posso sentir o amor dela me envolver. Com Clara tudo é diferente.
            Não me importa que isso vá desaparecer. Não me importa que isso seja uma ilusão. É o que eu quero agora. E eu posso ter o que quero. Posso, porque ela também quer.
            Seu corpo trêmulo não está mais inteiramente à minha mercê e seus desejos têm vida própria neste ponto, seus lábios têm sua própria fome para saciar. Quando se desgrudam dos meus, só por um momento, eu os quero de volta, e minha boca faz o contorno sutil de seu maxilar enquanto ela se esforça por deixar as palavras escaparem contra minha pele.
            — Eu quero você, Eric.
            — Também quero você — respondo, uma confirmação pálida daquilo que meu corpo vem gritando.
            Ouvi-la dizer que me quer é o suficiente para mim. É a permissão pela qual eu não tinha percebido o quanto estive esperando. Meus olhos reivindicam a visão de seu corpo e meus dedos tentam se livrar de sua blusa. Subitamente, ela me impede, interrompendo o curso de minhas mãos para dizer alguma coisa à qual dou pouca atenção.
            A raiva que a frustração me desperta poderia ser incontrolável nesse ponto, se meus olhos não estivessem bem abertos. Se todos os meus sentidos não estivessem perfeitamente cientes de que é Clara quem está me conduzindo aqui. Que ela é mais importante do que todos os meus desejos e a consciência deles. É só então que finalmente registro suas palavras.
            — Você não está entendendo. Não quero ser sua dona, porque quero que você escolha ficar comigo. Quero seu coração, mas só se você me der.
            Ela... O quê?
            Por um milésimo de segundo acho que ela está brincando comigo. Escolhas não me são oferecidas tanto quanto são tiradas. Isso simplesmente não é o tipo de coisa que acontece comigo. Não sou alguém que se possa querer dessa maneira.
            — Eu quero você, Eric. Quero você do jeito que é, quero o que quiser me dar. É essa a resposta para a sua pergunta. Quero seu coração.
            Como se soubesse o que sinto, Clara reafirma suas palavras, e uma parte de mim finalmente consegue acreditar. Eu sinto a verdade. O que não torna as coisas mais simples. Não posso permitir que ela se vá, mas sei o quanto é cruel desejar tanto que ela fique. Ela crê no que diz com uma fé cega que não posso permitir.
            — Você não sabe o que está dizendo. Quando você souber, vai mudar de ideia.
            E será melhor assim para você.
            — Então me diga onde estou me metendo. Deixe que eu decida por mim mesma. Não vou te deixar. Eu juro.
            Tentar não acreditar nisso é a coisa mais difícil que já fiz desde que a conheci, desde que percebi que o fim óbvio e imediato de minha dor só ia dar início a outra maior. Desde que percebi que ela era, de fato, minha Luz. Minha única luz neste mundo.
            Então, de repente, me canso de lutar.
            Você pode passar a vida toda desejando algo. Até o dia em que simplesmente para de querer qualquer coisa. Até o dia em que sua vontade morre e você se torna uma casca de prazeres superficiais, apenas um invólucro duro o suficiente para não se quebrar. Você pode se acostumar com isso e achar que pode sobreviver bem assim. Mas nunca estará preparado para o dia em que proteger a si mesmo deixa de ser o mais importante.
            Estou cansado de ser aquele que não se permite quebrar. Estou cansado de proteger o nada dentro de mim. Se eu deixar que meu coração se parta, talvez encontre algo ainda vivo lá dentro. Então me deixo ir.
            O corpo dela se aperta contra o meu. Um gemido baixo escapa de sua garganta e ressoa dentro de mim,            incendiando tudo em seu caminho. Mas o que acontece aqui é mais do que isso. Ela é muito mais do que alguém para aplacar o meu desejo. O que está me dando é muito mais do que jamais me foi oferecido.
            Ela confia em mim. E eu seria menos do que nada se me aproveitasse disso. Mesmo que seja o que se espera de mim. For fuck’s sake![1] É o que me propus a fazer. Conquistar sua confiança, conseguir o que quero e deixar tudo para trás sem me importar com o estrago que possa ter feito.
            — Não posso fazer isso — digo, afastando-a um pouco de mim, embora sua mera presença no mesmo cômodo que eu seja suficiente para me fazer mudar de ideia a qualquer hora.
            Meu corpo todo protesta num desespero mudo quando o privo de ser aplacado. Mas, embora tê-la neste momento seja tudo o que mais quero, não posso fazer isso ao preço de transformar o que ela está me oferecendo em nada. Se alguma vez acreditei que conseguiria realmente trair sua confiança, depois de hoje seria repulsivamente ingênuo continuar me enganando.
            Ela se sente rejeitada quando me afasto. Posso perceber isso com a mesma facilidade de sempre. Não me incomodaria se fosse com outra pessoa, mas não suporto a ideia de que justo ela se sinta assim, então eu a beijo suavemente, apenas o suficiente para não iniciar a ignição que mal consegui evitar. Estendo meus dedos e toco seu rosto, venerando a compaixão em seus olhos e o desejo intenso sob sua pele.
            Ela precisa da verdade. Ao me dar uma escolha, ela ganhou o direito de escolher também. Mas não posso mentir para mim mesmo. Eu não a quero somente se ela quiser ficar, eu a quero de qualquer maneira, a qualquer custo, mesmo sob o risco de deixar este poder me consumir. O único risco que não posso correr é que ela não me perdoe. Estou penhorando minha vida numa promessa de sinceridade que não sei se consigo cumprir.
            — Não posso fazer isso enquanto você não me conhecer de verdade. Preciso te dar o mesmo direito de escolha que você está me dando, mas não posso fazer isso agora.   — Você não acredita em mim quando digo que vou ficar ao seu lado, não importa qual seja a verdade que se recusa a me contar? Eu conheço a natureza das pessoas, Eric. Sei que você vale mais do que esta ideia terrível que tem de si mesmo. Sei que você é melhor do que imagina.
            Quantas vezes ela vai me dizer isso antes de se convencer do contrário? E, de qualquer jeito, a possibilidade de ela estar certa deixou de ser importante há muito tempo. É só uma coisa em que ela quer acreditar, e o fato de ela precisar disso só não me incomoda mais do que saber que, no momento em que entrei em sua vida, eu a pus em perigo.
            Sento-me no sofá e a puxo para mim, porque quero sentir que posso cuidar dela, que posso protegê-la. Ela se aninha em meu colo como se seu lugar sempre tivesse sido ali e sinto como se as coisas pudessem mesmo dar certo, como se nada que fiz ou ainda farei pudesse estragar o amor dela por mim. A sensação é boa, mas não me iludo. Posso ficar brincando de “Eric-bonzinho” o quanto quiser, posso permitir a mim mesmo mais um tempo com ela, mas cedo ou tarde nós dois teremos que encarar a verdade. E antes disso acontecer, preciso dar um jeito de limpar minha sujeira.
            — Você é tão doce, Luz! É tentador fingir que posso fugir de todas as coisas erradas que me perseguem, mas eu não quero mentir para você. Ainda tenho... pendências a resolver.
            — É por causa dela?
            Esther. Houve um tempo em que achei que poderia me acostumar com quem somos, que poderia vir a gostar disso tanto quanto ela. Estar entre as pernas de uma mulher assim pode fazer um homem se convencer de muitas bobagens. Mas ilusões não são eternas, e as minhas com relação a Esther acabaram logo. Muito cedo para ela. Tarde demais para mim.
            — Não do jeito que você está pensando, mas, sim, ela faz parte do problema.
            — Me conte qual é o problema.
            — Eu vou. Quando não precisar mais te envolver nas sujeiras de minha vida. —Quando Esther estiver longe de nós. — Eu não sou o cara ideal pra você, Luz. Não posso impedir as trevas de nos espreitarem, mas posso cuidar para que elas não maculem você.
            — Não sou um cristal, Eric. Não vou me quebrar. Posso ajudar você a lidar com seus problemas, sejam eles quais forem.
            Ela não sabe o quanto isso é verdadeiro. O quanto não há nenhuma coincidência no fato de estarmos aqui juntos. Mas quando tudo isso acabar, quero poder dizer a ela que esse não foi o motivo. Quero que ela saiba que a amo mais do que preciso dela.
            — Eu sei que você pode. Mas esta noite eu percebi que não quero. Você me deu uma escolha. Não acho que faça ideia do que isso significa para mim, mas eu escolho você. Escolho que isso que está acontecendo entre nós seja mais importante do que o resto. E escolho, acima de tudo, manter você a salvo.
            Deixo minha mão traçar o contorno de seu corpo. O rosto que nunca vou esquecer, o contorno do seio firme e tentador, a cintura delicada, o quadril cheio e a coxa deliciosa que repousa sobre minhas pernas. Ela é linda e me faz acreditar que existem coisas boas no mundo. Sua expressão preocupada e amorosa não muda e ela não impõe nenhuma resistência à mão que explora seus contornos. Porque confia em mim.
            Sei que não mereço isso, mas já não me importo. Talvez um dia eu possa ser alguém que valha a pena, mas até lá posso estar perto dela e acreditar no reflexo de mim mesmo que vejo em seus olhos.
            — Vou encontrar uma saída para mim. Só preciso de um tempo.
            — Você está me assustando, Eric. Tenho medo de que alguma coisa aconteça com você.
            — Medo?
            — É que eu... desculpe, mas ouvi parte da sua conversa... Não era minha intenção, mas eu estava vindo falar com você e vi a porta aberta... O que me pareceu é que você deve alguma coisa a alguém muito perigoso.
            Eis uma interpretação interessante dos fatos! Quando se ouve cascos, é mais natural pensar em cavalos do que em zebras. Exceto que a Navalha de Occam[2] nunca funcionou para mim. Mas, bem, posso deixá-la pensar assim por enquanto.
            — É mais ou menos isso. Mas você não tem que ter medo. Nada vai acontecer comigo.
            — Não me pareceu que Esther estivesse brincando. Parecia que ela estava te dando uma espécie de ultimato.
            — E estava, mas ela não tem interesse em me fazer mal.
            — Porque ela gosta de você.
            Não é uma pergunta, e ela tem uma expressão meio-engraçada, meio-enfurecida no rosto quando diz isso. Mesmo depois de tudo, ela ainda está magoada com o que viu, o que, embora não faça sentido para mim, faz todo sentido para ela. É claro que eu deveria saber que o joguinho de Esther produziria efeitos duradouros em Clara, mas a ideia de que aquela víbora tenha sentimentos e que eles importem minimamente para mim é tão ridícula que não consigo conter um riso amargo.
            — Isso não faz diferença — respondo sem rodeios, mas, aparentemente, não é o que Clara queria ouvir.
            — O que as pessoas sentem por você não faz diferença?
            — O que Esther sente não faz diferença para mim. Já o que você sente me importa muito.
            — Mas ela foi sua namorada. Deve significar alguma coisa.
            Ah, meu anjo! O mundo é um lugar bonito para você, não é?
            — “Namorada” é um palavra que implica em um relacionamento que não tivemos. Você vai ter que se acostumar com a ideia de que outras mulheres passaram pela minha vida e que não me importei com elas da forma como me importo com você. Para mim, elas foram embora do mesmo jeito que chegaram.
            Ela pensa por um momento, parecendo chocada com a visão prática e pouco romantizada que estou lhe oferecendo da minha vida. Depois sorri timidamente.
            — Acho que, de uma forma meio torta, esse foi um imenso elogio.
            Não respondo. Sei que ela não gosta de pensar em mim como a pessoa fria que posso ser, mas não vou fingir em seu benefício. Posso não lhe contar meus segredos, mas não pretendo mentir para ela em relação à sua própria importância. Nem em relação à importância dos outros.
            — As pessoas não são como você, Luz. Sentimentos são coisas desnecessárias em boa parte das relações. Esther não se importa comigo, ela não gosta de mim. Não de verdade. Ela apenas me quer, o que é muito diferente.
            — Não sei se isso me deixa mais tranquila. Na verdade, eu preferia que você me dissesse que ela é completamente apaixonada por você. Porque querer... é algo meio complicado. Ela me parece o tipo de pessoa que pega o que quer, não importa o que aconteça. Ela me dá medo.
            De repente, ao ouvir o temor na voz e nas palavras de Clara, me dou conta de que preciso me livrar o mais rápido possível de Esther. Não estou disposto a dar o que ela quer de mim, mas posso encontrar alguém que o faça. E, nesse meio tempo, preciso manter a maldita satisfeita e longe daqui.
            — Posso sair dessa, só preciso de um tempo, ok? Você me pediu para esperar por você, estou te pedindo a mesma coisa agora. Só me prometa que vai ficar longe de Esther. Você promete? — Clara assente sem dizer nada. Ela parece frágil, mas sei que sabe se defender, sei que percebeu que aquela maluca é o tipo de gente por causa de quem se tranca as portas. — Se ela vier aqui, se te procurar, use seus instintos e se afaste. Eu não vou deixar mais ela se aproximar de você, mas você também precisa ficar atenta.
            — Você disse que ela não faria mal a você...
            — Eu disse que ela não tem interesse em me prejudicar. Por isso você está segura, mas não estou disposto a arriscar.
            — Não gosto disso. Não gosto que ela saiba coisas sobre você que eu não sei. E não gosto que ela esteja por perto quando você me diz para ficar longe. Me parece injusto que eu não saiba com o que estou lidando.
            É injusto. E perigoso. E a maldita culpa é minha. Mas Esther pensa que estou usando Clara, que ela, como eu, não passa de meios para um fim. Ela está se divertindo com isso e tem certeza de que, no fim, vou acabar me cansando da brincadeira e vou fazer exatamente o que ela quer. E é nisso que vou fazê-la acreditar a partir de agora. Não é uma solução definitiva, mas é como vou ganhar tempo até encontrar alguém que ocupe meu lugar em sua maldita obsessão.
            — É por pouco tempo, Luz. Prometo. Você vai saber da verdade. — Por mais que eu tenha a perder com isso, é o que lhe devo. — E você não vai precisar se preocupar com ela nem com ninguém.
            — Ainda acho que ela está em vantagem...
            — Não tenha tanta certeza disso. A verdade sobre o passado pode ser superestimada às vezes. E você vai saber, de qualquer jeito. Mas ela não tem o que você tem.
            — Você? — ela pergunta, com uma expressão manhosa que eu adoro.
            — Por quanto tempo quiser.
            — Eu sempre vou querer você.
            — Vamos pensar apenas no agora. — Por favor.
            — Pensando apenas no agora — ela diz, com o ombro encolhido e uma expressão de quem se desculpa. — Acho que devíamos voltar para o bar. Já faz tempo que paramos de trabalhar e já é a segunda vez que fazemos isso em pouco tempo. O pessoal vai ficar chateado.
            — Esqueceu que você está namorando o patrão, baby? — retruco em tom de brincadeira. Como se eu não soubesse que isso a faz se sentir ainda mais culpada. Ela fica vermelha e não diz nada por algum tempo.
            — Mesmo assim, ainda tem gente no bar e falta... — Ela dá uma espiada discreta em seu relógio de pulso e seus olhos se arregalam ao constatar que estamos aqui a mais tempo do que ela imaginou. — Falta só meia hora para o bar fechar.
            Minha vontade é de não largá-la, passar a noite toda ao lado dela, mesmo que seja apenas para abraçá-la e aproveitar cada momento enquanto posso. Por outro lado, a mera possibilidade disso já faz meu sangue ferver quando não devia. Provavelmente não é uma boa ideia pôr minha resolução à prova como se meus impulsos fossem algo a ser ignorado. Além disso, tenho uma mentira para contar. Ainda esta noite, vou procurar Esther com a resposta que ela quer ouvir.
            Clara começa a se levantar quando não respondo ao seu convite de voltar ao trabalho, mas eu a puxo de volta. Só quero mais um minuto longe do resto do mundo. Apenas um minuto ao lado dela.
            Como se pressentisse minha necessidade, ela me beija, abraçando-me com força. Não sei por quanto tempo nossa paz pode durar e, certamente, ela também se pergunta isso, mas, apenas por um momento, nossas dúvidas se perdem em nossos lábios.
             É um sentimento estranho estar perdido e ao mesmo tempo tão certo de onde é meu lugar. Talvez eu perca tudo, mas não quero pensar no depois quando o agora é tão mais interessante. Mesmo que o inferno nunca esteja longe, Clara me faz sentir acima do céu. E, ao menos por esta noite, isso deve bastar.













[1] Interjeição que pode ser equivalente a algumas bem deselegantes em nossa língua. Pense você no seu próprio exemplo.
[2] A navalha de Occam é uma linha de pensamento que diz que a resposta mais simples costuma ser a certa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentem e façam uma Autora Feliz!!!

Visitas ao Amigas Fanfics

Entre a Luz e as Sombras

Entre a luz e a sombras. Confira já.