Capítulo 30 – Oceano e Âmbar
They say it's what you make
I say it's up to fate
It's woven in my soul
I need to let you go
Your eyes, they shine so bright
I want to save their light
I can't escape this now
Unless you show me how
When you feel my heat
Look into my eyes
It's where my demons hide
It's where my demons hide
Don't get too close
It's dark inside
It's where my demons hide
It's where my demons hide
(Demons – Imagine Dragons)
Marina não ficou por muito mais
tempo depois daquilo, mas eu permaneço presa àquele momento, vendo e revendo
suas nuances até me certificar de que a memória dele esteja tatuada em mim.
Eventualmente, porém, preciso voltar
a pisar no chão. E é só quando sou obrigada a voltar ao mundo real e começar a
me arrumar para o trabalho, que me dou conta de que ir dirigindo para lá não é
uma opção. Tinha me esquecido completamente do atentado ao meu pobre carrinho e
de minhas pretensões de conseguir consertá-lo antes que Eric tivesse que se
incomodar com isso.
Meu plano original era levantar bem
cedo e tomar as providências necessárias, depois ligar para ele com alguma
desculpa do tipo “tenho um amigo borracheiro” ou algo assim, e convencê-lo de
que eu podia poupá-lo do trabalho. É provável que fosse uma tarefa difícil, no
entanto, porque ele não tinha se mostrado muito flexível quanto a isso ontem à
noite.
Eric colocou na cabeça que é responsável
pelo ocorrido e, no fundo, acho que ele pensa que eu concordo com essa bobagem,
o que é justamente a impressão que eu gostaria de desmanchar tentando resolver
as coisas por mim mesma. Pelo menos era minha pretensão antes de pensar direito
no assunto, mas, sendo sincera comigo mesma, agora isso está começando a
parecer uma péssima ideia.
Não quero que ele me tome por
orgulhosa. Embora esteja acostumada a resolver meus próprios problemas, gosto
de saber que alguém está disposto a cuidar de mim e fazer coisas para me
agradar, por mais antiquado que pareça. E mesmo que me presentear com flores e
consertar meu carro sejam coisas bem diferentes no resultado final, partem do
mesmo tipo de intenção, do mesmo tipo de gentileza sobre a qual conversamos ontem
e que eu disse a ele que valorizava tanto.
É só que ainda estou testando os
limites da situação toda de ter alguém tão presente em minha vida, e não quero
que ele pense que precisa agir assim, como um cavalheiro salvador, o tempo
todo. Quer dizer, cavalheiro, sim. Parece bom. Mas salvador, não. Afinal, não
sou tão antiquada assim. Não o tempo todo, pelo menos.
O fato é que, de repente, já não
tenho mais tanta clareza sobre o que fazer e é quase um alívio perceber que, ao
menos por hoje, não preciso mais pensar na questão, já que minha cabeça relapsa
e o sono dessa manhã acabaram decidindo por mim. O máximo que posso fazer é
esperar que Eric também tenha adiado o assunto e que possamos conversar melhor
sobre ele mais tarde. O que me resta agora, portanto, é pensar em outro meio de
transporte.
Considerando a opção mais óbvia,
encontro anotado em um caderno o número de telefone onde se pode consultar as
linhas de ônibus de cada bairro, e é só quando vou fazer a ligação que me dou
conta de que me esqueci de recolocar o cabo do telefone depois da “Madrugada
das Ligações Perturbadoras”. O celular
também passou o dia desligado e, na tela, sem contar as que aparecem no
identificador de chamadas do fixo, deve haver mais ou menos uma dúzia de
ligações de Eric.
Droga!
Era
mesmo de se esperar que ele ligasse oferecendo carona. Outra obviedade que meu
cérebro sobrecarregado não considerou, como se meus modos tivessem sido
rasgados junto com os pneus de meu carro. Censurar-me mentalmente não é
suficiente, então decido ligar para ele e me desculpar, mas antes resolvo
verificar as mensagens de texto que ele deixou. São três. Uma quantidade
surpreendentemente pequena para todas as minhas horas de “sumiço”. Ou talvez
três seja o suficiente e eu só esteja estranhando porque se fosse Paty eu teria
que escolher entre ler todas ou ir trabalhar.
“O que aconteceu com seus telefones?”
É o que diz a primeira, mandada
cerca de uma hora atrás. A segunda, recebida vinte minutos depois, é um pouco
mais longa.
“Não consigo falar c vc. O q houve?
Vc está bem? Vou buscá-la às 5:30”
Tento adivinhar seu estado de
espírito por trás das palavras, mas não consigo. Estou em busca de algum sinal
do aborrecimento que a quantidade de ligações perdidas parece revelar, mas não
estou certa se consigo perceber algo além de preocupação. Lembro-me de sua
expressão na noite em que ele me encontrou chorando no estacionamento, de como
ele ficou tão perdido em meu sofrimento que parecia que estava sentindo minha
dor. E depois, da promessa de ódio que vi em seus olhos quando ele achou que
alguém tinha me magoado. Ainda me é impossível medir suas reações, mas sei que
não quero vê-lo tão agoniado novamente. Menos ainda por minha culpa, ainda pior
que seja sem motivo.
Antes, porém, de me permitir afundar
em lamentações pelo descuido, verifico a última mensagem, deixada pouco antes
de eu ligar o celular.
“Esqueça. Estou indo agora.”
Agora!? A hora inteira que eu tinha
para me arrumar de repente virou o quê? Cinco minutos? Olho no relógio meio
desesperada, mas compreendo a inutilidade do ato. Não sei de onde ele está
vindo, ou mesmo se já estava a caminho quando me escreveu. Não dá para ter
certeza de quanto tempo eu realmente tenho. O que significa que terei sorte se
conseguir tomar o banho mais rápido do mundo e vestir meu uniforme antes dele
chegar.
Parto para a ação e deixo meus
pensamentos se transformarem numa sequência de verbos cujos complementos a
pressa tolhe: molhar, ensaboar, enxaguar,
secar, vestir... Tudo tão rápido que minha mente provocadora brinca que meu
piloto automático deve ser campeão de Fórmula 1.
Dou uma olhada desejosa para meu
secador de cabelos e lamento não ter tempo para ele. Não sou vaidosa, mas isso,
especificamente, é uma coisa que me faz falta quando não consigo fazer. Meu
cabelo sempre demora muito a secar naturalmente e fica cheio de ondas nos
lugares errados. Infelizmente, não tive como deixar a lavada para amanhã, e
agora vou acabar a noite com os cabelos presos num daqueles coques desleixados
que me deixam com cara de doida. É terrível e engraçado que ter um namorado me
faça pensar em coisas tolas como essa, mas aqui estou, levando realmente a
sério algo fútil como a aparência do meu cabelo.
Céus! A coisa de me sentir mais
humana soa bem estranha nessas horas!
Ainda estou debatendo comigo mesma a
possibilidade de usar os minutos que restam para secar o que der, quando o som
do interfone anuncia que o tempo acabou. De repente, só o que me importa é que
vou ver Eric nos próximos instantes. Embora outras coisas tenham absorvido
minha mente durante o dia, uma parte minha ansiou por este momento como se eu
estivesse faminta.
Quando abro a porta e ele está aqui,
diante de mim, é uma sensação tão boa que não sei o que fazer com ela. Quero
tanto estar nos braços dele que nem sei se estar de fato seria o suficiente.
Provavelmente, só me faria querer mais. Ainda assim, quase dói tê-lo tão perto
e não beber sofregamente cada segundo de sua presença.
Eric, por outro lado, não parece ter
dúvidas quanto ao que quer. Devolve meu olhar por apenas um segundo e suas mãos
se estendem, me empurrando para dentro. Nem sei como ele fecha a porta ou como
estou subitamente fora do chão, tão apertada em seu abraço que minha pele
respira a dele, tão consumida por seu beijo que nem percebo que estamos no
sofá.
É um beijo furioso. Seus dentes
apertam meus lábios e sua barba por fazer raspa meu rosto impiedosamente, como
se ele quisesse mesmo me marcar, me fazer arder, em todos os sentidos
possíveis. Não me importo, porém. Não me importo com nada. Só quero mais. Quero
essa dor sutil para mim porque a ideia de não senti-la parece uma tortura e ele
sabe.
Ele sabe quando meu corpo começa a
precisar do dele como se não pudesse mais se mover se não queimarmos juntos.
Ele sabe quando a ideia de parar parece ao mesmo tempo a única coisa segura a
se fazer e a única impossibilidade que meu instinto aceita. Cravo as pontas de
meus dedos em suas costas sentindo a fúria em mim. Sou eu quem o quer agora,
quando seu beijo se acalma e seus lábios se tornam uma carícia doce e
torturante, como se ele soubesse exatamente o que está fazendo comigo.
— Senti uma saudade insana de você —
ele balbucia, mordiscando meu queixo. A
voz dele faz coisas estranhas comigo. Faz meus joelhos enfraquecerem como se eu
estivesse carregando toda a paixão do mundo em minhas costas, em meus ombros,
em meu peito. Por isso não consigo responder. Minhas pernas estão enroladas na
cintura dele e meu impulso imediato, um ao qual não tenho forças nem vontade
para resistir, é apertá-lo contra mim. Um
som áspero escapa de sua garganta quando o faço e toda minha pele se arrepia no
mesmo instante.
Uma de suas mãos sobe pela minha
coxa e se infiltra sob minha saia, apertando minha bunda com vontade.
Estranhamente, a intimidade desse toque não me assusta em nada. Ele já esteve
próximo demais de minha alma para que meu corpo não seja seu território.
— Deliciosa — ele diz, com aquela voz. — O que você está
tentando...
Um latido ligeiramente agoniado nos
interrompe. Olhamos ao mesmo tempo para um Blue contrariado por não receber
nenhuma atenção do visitante, e curioso com a atitude daquele desconhecido
atrevido.
— Seu cachorro está olhando feio
para mim — ele brinca.
— Também, você está em cima da mãe
dele. O que esperava?
Blue solta outro latidinho
desaforado e Eric ri, apertando-me uma última vez e deixando seus dedos
deslizarem provocadoramente para a parte da frente da minha coxa, antes de me
ajudar a levantar e me dar um beijo na testa.
Não estou brava com Blue, nem
poderia, é quase impossível para mim quando vejo seus olhos inocentes, mas
também não posso evitar que meu corpo proteste em frustração. Ainda sinto o
calor da pele de Eric e a iminência deliciosa do que quase aconteceu. Estava me
sentindo tão bem que não pensei em nada, nem na nossa conversa de ontem, nem
nas consequências de nos precipitarmos. E até que esses pensamentos ajuizados e
coerentes consigam se sobressair à onda de desejo, acho que vou ficar com uma
cara de criança que perdeu o doce.
— Bem, isso certamente acaba com o
clima — Eric diz, fazendo uma cara engraçada de quem não sabe se ri ou fica
irritado.
Ele também não parece muito feliz,
obviamente, mas está lidando com isso com mais elegância do que eu, pelo menos
tentando fazer uma cara simpática para o cachorro que coloca as patas da frente
sobre os joelhos dele e reivindica seu reconhecimento, farejando para todo
lado. Não me escapa o quanto ele parece desconfortável a princípio, mas acaba
cedendo quando o cãozinho continua de olhos fixos nele e rabo abanando. É engraçado
vê-lo estendendo a mão cuidadosamente, deixando que Blue a fareje, e depois lhe
fazendo um carinho tímido entre as orelhas. De início, o gesto parece estranho,
pouco familiar, depois ambos ficam mais confortáveis um com o outro e Eric
parece gostar do contato.
— É a primeira vez que você brinca
com um cachorro?
— Com um que gosta de mim, sim.
— Ele realmente gostou de você. Mas
não fique se achando. Ele gosta de qualquer um. É um oferecido — brinco. E como
para confirmar o que acabei de dizer, Blue inclina a cabeça para trás e tenta
lamber a palma da mão de Eric, que a retira meio enojado. Não aguento olhar
para aquilo e começo a rir.
— Não sei, não. Acho que, apesar das
previsões contrárias, ele pode gostar especialmente de mim. Você sabe, dizem
que os cachorros se parecem com os donos — ele graceja, mas depois se finge de
sério e volta a ostentar a expressão de nojo. — Apenas diga a ele que não estou
pronto para um relacionamento que envolva saliva.
— Eu tentarei. Mas ele não é muito
sensível aos meus argumentos quando se trata de babar ou morder.
— Na verdade, ele me parece um
carinha bem razoável. Agora há pouco, por exemplo, ele interrompeu nosso lance,
mas acho que ele tinha suas razões. Estava tentando me proteger de você.
— Não seria o contrário?
— Hum, acho que não — Eric diz,
apertando os lábios numa expressão dissimuladamente grave. Aprecio a tentativa
dele de lidar com as coisas com bom humor e resolvo entrar na brincadeira.
— Ah, é mesmo? Quer me explicar isso
melhor? Porque eu acho que não faz o menor sentido.
— Veja só, preste atenção. Está
claro para todo mundo nesta sala que você está tentando me deixar louco. — Com
ar brincalhão, ele estende um dedo como se fosse iniciar uma contagem. —
Primeiro, você fica fora de contato e eu quase endoido de tanta preocupação...
Ops!
— Desculpe por isso, de verdade. Eu
desliguei tudo porque queria dormir até tarde e depois me esqueci de religar.
Foi muita falta de consideração minha.
— Não faça mais um negócio desses.
Minha sorte foi que eu só comecei a te ligar há umas duas horas. A coisa mais
leve que pensei até tomar a decisão de vir até aqui foi que você tivesse se
arrependido de ontem e não quisesse mais me ver.
Ouvir isso me surpreende e fico sem
fala. Apesar de todas as coisas que ele já me disse sobre não ser bom para mim,
a insegurança quase juvenil da frase não combina com o que ele me deixa ver
quando estamos juntos, com o homem que entrou aqui parecendo saber exatamente o
que queria.
— Eric, eu não...
— Sim, eu sei. Não leve isso a sério
demais. Só fiquei preocupado com você e comecei a fazer conjecturas.
— Não faça essa conjectura. Nunca.
Ele pega minha mão e beija meus
dedos. Seus olhos se fecham por um instante e depois ele volta a me lançar seu
olhar zombeteiro.
— Segundo, você me recebe molhada do
banho. Parece que lê meus pensamentos indecentes. — Ele afunda o nariz em meu
cabelo úmido e inspira com prazer. Fico toda arrepiada e é difícil pensar por
um instante, mas o que ele disse antes também mexeu comigo, e não estou
disposta a negligenciar o sentimento.
— Prometa, Eric!
— O quê? — ele me olha, confuso.
— Prometa que nunca vai pensar que
eu me arrependi de ficar com você. Eu escolhi isso. E você disse que ia parar
de tentar me convencer do contrário.
Ele segura minha nuca e me beija,
prendendo minha cabeça de tal modo que mal posso corresponder ao beijo, apenas
sentir seus lábios se movendo sobre os meus num ritmo inteiramente determinado
por ele.
— Prometa — insisto quando
conseguimos nos separar.
— O que você quiser, amor — ele
responde, brincando com meu cabelo de novo. — Eu prometo o que você quiser.
Amor...
Não
é justo fazer isso comigo agora, me chamar assim... Porque eu não sou tão boba
quanto pareço e isso não foi um “sim”.
— Você nem está me olhando nos
olhos...
— Não, não estou. Porque você sabe
que eu não vou ficar mentindo pra você. Certo.
Por essa eu não esperava. Não sei por que, também. O senhor lacônico sempre
sabe como me deixar sem palavras. Mas o fato é que ele tem razão. De certa
forma, é como se estivéssemos tendo a mesma conversa de ontem, enquanto eu
espero por um resultado diferente.
— Desculpe, estou te pressionando.
— Baby, entenda uma coisa: eu não...
— Ele suspira, passando a mão pelos cabelos de forma tensa, e eu me arrependo imediatamente
de ter começado isso. Não quero que nosso relacionamento gire sempre em torno
de conversas assim. — Eu não posso desejar que você nunca se arrependa. Não é
certo. Seria mais seguro que você se arrependesse em algum momento e se
afastasse. Estou sendo egoísta por acreditar em você.
— Então você acredita em mim?
Isso
é bom. E eu gostaria muito que fosse o suficiente.
— Não é da sua palavra que eu
duvido.
— É de você mesmo, então, não é?
Eric se recosta no sofá e me dá
apenas um sorriso de lado, mas não responde. Coisas demais cabem nesse sorriso,
entretanto. E não há nada que eu possa dizer antes que ele entenda por si só o
que também cabe no meu.
— Tenho uma coisa pra você — ele
diz, remexendo nos bolsos e me estendendo a chave do meu carro. — Novinho em
folha. Quer dizer... quase isso. Me ajude a entender: por que um Fusca?
— Gosto de coisas antigas — respondo
sem dar muita atenção à pergunta, porque minha cabeça está ocupada tentando
formular um agradecimento digno. No final, não sobra muita coisa a dizer além
de “obrigada”, mas realmente sinto que não é suficiente. — Não sei como
agradecer.
Ele assente, estreitando levemente
os olhos como se pensasse a respeito.
— Tenho algumas ideias se você
estiver sem.
Sorrio e desvio o olhar, porque acho
que estou ficando vermelha. Quando volto a encará-lo de novo ele está rindo.
Eric gosta de me provocar.
— Você não devia começar coisas que
não está disposto a terminar — devolvo, repetindo o que ele me disse outro dia,
aqui, neste mesmo lugar.
— Touché! — ele brinca, segurando o peito na altura do coração como
se tivesse levado um golpe fatal.
Nós rimos e depois ficamos nos
olhando em silêncio por um tempo. Assim como a mim, a quietude parece não
incomodá-lo. É simplesmente agradável estarmos juntos sem nos preocuparmos com
nada. Embora não seja exatamente este o caso agora. Não para mim, pelo menos.
— Eric, eu... Ahn... Bom, para ser
franca, estou um pouco constrangida por você ter tido esse gasto comigo.
— Você fica constrangida quando alguém
te dá um presente?
— Não, mas...
— Você disse que gosta quando eu te
dou flores — ele afirma, com um ar de jogador que prevê exatamente os
movimentos do oponente, como se já conhecesse as fraquezas dos argumentos que
eu poderia dar. Sei disso porque eu mesma tinha me colocado essas cogitações
mais cedo. Entretanto, ainda não consigo me convencer de que ambas as
gentilezas tenham o mesmo peso.
— Sim, gosto muito. Você sabe. Mas é
diferente.
— Por quê? Porque foi mais caro?
— Bom, sim — respondo. —
Consideravelmente.
— Não me parece uma boa razão para
você estar constrangida. Não foi incômodo algum para mim e fiquei feliz em
poder fazer algo que mostrasse o quanto estou empenhado em cuidar de você. É só
isso. Eu gostei de fazer isso pra
você. Não entendo o drama.
— Não é drama. É só que você não
precisa ficar fazendo esse tipo de coisa. Você não é responsável pelo que
aconteceu, mesmo supondo que tenha sido obra de Esther.
— Com Esther eu me preocupo mais
tarde. — Ele me puxa para seu colo e me abraça, enterrando o rosto na curva de
meu ombro e cheirando minha pele. — E não quero que você se preocupe também.
Nem com ela, nem comigo. Eu só... gostei da sensação de fazer uma coisa boa.
Não vejo seus olhos quando ele diz
isso, mas sinto a verdade por trás das palavras. Elas pesam sobre mim com um
misto de alegria, beleza e dor, como quem recebe de volta uma criança que fugiu
de casa por livre e espontânea vontade. Eric parece ser assim sob muitos
aspectos: alguém que está aprendendo que a vida merece uma chance, e que ter
para onde voltar quando nos perdemos deveria ser a regra, não a exceção.
— Obrigada. E me desculpe — peço.
— Por quê? — Ele me retorna um olhar
confuso.
— Por não entender. A princípio. Por
transformar seu gesto em uma questão de dinheiro.
— Não é importante — ele desdenha.
— É importante, sim. — Não preciso
que Eric me prove nada, sei que ele é uma pessoa melhor do que acredita ser.
Mas cada pequeno gesto que torna isso evidente para ele mesmo é bem maior do
que parece. — Fico feliz que você tenha se sentido bem.
Corro os dedos pelo contorno de seu
rosto, sentindo a barba curta e a pele macia. Não tinha me dado conta ainda de
que agora posso tocá-lo sem receios. Obviamente, a leveza dessa liberdade é
algo inédito para mim. E eu adoro a sensação. Gostaria de nunca ter de parar.
— Isso é novo para mim — seu tom de
voz me segreda, como se soubesse o que estou pensando. — Gostar de estar com
alguém. Simplesmente gostar sem ter nenhum interesse, nenhuma amarra, a não ser
as que eu escolher ter. Não sou bom, mas gosto de ser bom com você.
— Supondo que você esteja certo, é
preciso começar de algum lugar. Então eu aceito ser o seu começo.
— Aconteça o que acontecer, qualquer
que seja o nosso futuro... — Ele pega minha mão e pousa sobre a dele,
observando nossas palmas espelhadas em frente aos seus olhos. Depois, entrelaça
nossos dedos e beija suavemente os meus. — Preciso que você saiba o que o dia
de ontem significou para mim. Você me deu uma escolha e eu te escolhi. Porque
quero você, entendeu? Por nenhuma outra razão. Você me faz querer merecê-la e,
mesmo que eu não consiga, sempre terei aquele momento em que você acreditou que
era possível. Em que eu acreditei.
Posso passar a vida tentando, mas nada que eu possa te dar, nada que eu possa
fazer para você, vai compensar o que você me faz sentir.
Acho que meu coração para por um
instante. Há ocasiões na vida que alteram nossas estruturas, fazendo seus
alicerces em pedaços para, no mesmo instante, reconstruí-los sob outra forma. E
então seu mundo se altera, torna-se maior. Melhor, talvez. Diferente. Na maior
parte do tempo, só ficamos cientes da mudança quando ela já está consumada. Mas
às vezes conseguimos flagrar a transformação e sua beleza brutal, tão poderosa
quanto perturbadora.
— Por que... por que você está me
dizendo isso?
— Porque preciso que você nunca
duvide.
“Preciso”.
Há uma urgência na maneira como ele
usa essa palavra, um desespero que todos os meus instintos desejam aplacar.
— Eu acredito. Prometo que não vou
duvidar. — Embora não saiba exatamente por que é tão importante para ele, eu
realmente acredito. Porque sei o quanto é importante para mim.
Eric não responde, apenas sustenta
meu olhar como se estivesse me sondando, prevendo que eu pudesse mudar de
ideia, mas minhas palavras não são mais minhas. Agora são dele. E não me diz
mais respeito o que fará delas. Só posso esperar. Finalmente, ele morde o lábio
e assente, sua própria expressão, antes insondável, suavizando-se em seguida.
— Você ainda precisa fazer alguma
coisa em casa? Porque temos que ir daqui a pouco.
Olho para o relógio e percebo que,
apesar disso me parecer apenas uma desculpa para mudar de assunto, ele tem
razão. O tempo passa rápido quando estamos juntos.
— Na realidade, eu até poderia usar
alguns minutos para me arrumar melhor, já que fiz tudo correndo. Mas prefiro
passá-los aqui com você — digo, beijando-o.
— Isso me parece infinitamente mais
interessante. Até porque você está linda assim como está. Só falta uma coisa...
— O quê? — questiono, confusa.
Ele remexe nos bolsos de novo e tira
um saquinho de veludo de dentro de um deles.
— Eu já tinha percebido que você
gosta de coisas antigas — diz, tocando meu relógio de pulso que, embora não
seja o de minha mãe, tem um ar vintage[1]
e um design muito parecido com o da
minha herança de família. —Vi isso aqui hoje e me fez pensar sobre ontem, sobre
você. Se um instante de luz pudesse ser guardado no tempo, acho que se
pareceria com isso.
Eric me entrega a bolsinha e me
indica com o olhar que eu desfaça o laço que a mantém fechada. Meus dedos
vasculham cuidadosamente seu interior até encontrar um cordão cor de ouro
velho. Uma linda gema de âmbar em formato oval pende do colar, enrodilhada por
um arabesco de folhas do mesmo material do cordão. Parece algo saído
diretamente das páginas de uma novela de cavalaria ou de alguma história de
magos e fadas.
— É lindo! — exclamo, sem conseguir
conter minha empolgação com a beleza do presente. — Mas... Por quê? Você não
precisa...
— Fazer essas coisas? Sim, eu sei.
Você já me disse. Posso colocar em você?
Ele sorri para mim, um sorriso aceso
e expectante que entra imediatamente para a minha galeria de preferidos, e nós
dois nos levantamos, ficando diante do espelho pendurado na parede. Eric afasta
meu cabelo com cuidado, acariciando minha nuca e deixando seus dedos
circundarem minha garganta e descerem por minha clavícula como se estivessem
estudando a textura de minha pele. Por fim, deposita um beijo na curva de meu
pescoço e coloca o colar em volta dele, atando o fecho habilmente.
— É lindo — repito, quando observo o
jeito como ele harmoniza com minha pele, com os cachos que começam a se formar
nas pontas de meu cabelo e com meus sonhos infantis de leitora voraz.
— Você é que é linda. Ele é
apenas... apropriado. Guarda uma história, como você.
— Todo mundo guarda uma história —
digo, me virando para abraçá-lo.
— Sim. Mas a sua é a única que eu
também quero guardar.
Olho para o espelho de novo, mas
agora meu foco não está mais no colar, e sim, no homem atrás de mim. Em seus
olhos de oceano profundo que guardam uma história ainda desconhecida, mas cujas
linhas estão irremediavelmente entrelaçadas às minhas. Não me importo de
esperar até que ele esteja pronto. Até que ambos estejamos prontos. Mas não há
mais como negar que, desde o dia em que nos conhecemos, é possível ler meu
mundo em seus olhos. Minha alma se lembra e sabe que, para o resto de minha
existência, minha história é a dele.
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