sábado, 3 de outubro de 2015

ELS Cap 31

Capítulo 31 – Sobre o Ciúme e seus Afins

If I could stay
Then the night would give you up
Stay
Then the day would keep its trust
Stay
With the demons you drowned
Stay
With the spirits I found
Stay
And the night would be enough

Three o'clock in the morning
It's quiet and there's no one around
Just the bang and the clatter
As an angel runs to ground
Just the bang and the clatter
As an angel hits to ground


Stay (Faraway, So Close) – U2


            Fui até a polícia outro dia, falar sobre os telefonemas. O policial foi gentil comigo e prometeu investigar, mas não precisei me esforçar muito para perceber que ele não estava dando crédito à teoria de que as ligações e o ataque de meses atrás são obra da mesma pessoa. Para falar a verdade, até eu comecei a duvidar um pouco quando disse as palavras em voz alta. Não é como se eu tivesse algo além de uma impressão para sustentar a suspeita. Por alguma razão, coloquei na cabeça que era ele quem me ligava, mas, afinal, o que eu sei sobre o encapuzado?
            A investigação nunca chegou a lugar algum e a polícia acredita que tenha sido um ataque aleatório; que se Caio não tivesse chegado a tempo, eu teria sido uma vítima de oportunidade, e não de um criminoso que estivesse mirando especificamente a mim. Até onde eu sei, faz sentido. Mesmo que eu tenha experimentado algo estranho quando ele me tocou, como se tivesse, de algum jeito, compartilhado seus pensamentos mais óbvios. E pensando bem, uma coisa não exclui a outra, no fim das contas. O que quer que tenha acontecido entre nós, pode ter começado como obra macabra do acaso.
            Pode não ser exatamente uma conclusão satisfatória, mas é a mais sensata a que posso chegar no momento. E talvez seja melhor assim. Talvez seja melhor não pensar mais nisso, porque suposições infundadas costumam conduzir a noites mal dormidas e a nenhuma resposta suficientemente tranquilizadora. Ou razoável, por falar em pensar direito nas coisas.
            Não é difícil deixar o tema de lado, porém. Não houve mais ligações para me amedrontar e eu não falei com ninguém sobre aquela noite, então não há quem possa ficar me lembrando do assunto. Além disso, há outros pensamentos ocupando minha mente. E a competição é bem injusta para um tópico tão desagradável e relativamente sem importância.
            As coisas com Marina estão evoluindo bem. Embora não tenhamos nos falado desde sua última visita, nossa conversa naquele dia foi muito mais do que eu poderia esperar. E quanto a Caio, ainda que ele não esteja me procurando e eu esteja respeitando o tempo dele — a duras penas — sei que esse afastamento não vai durar para sempre, que ele vai voltar para mim assim que conseguir desenrolar um pouco seus sentimentos confusos e superar o ciúme.
            Enquanto isso, Paty me mantém informada e diz que ele sente minha falta tanto quanto sinto a dele. Os dois ficaram amigos de Whatsapp ou algo assim e conversam o dia todo.
            Claro que ela não admite, mas me parece nas nuvens com isso, mesmo que insista em dizer que esse é o jeito dele de saber sobre mim sem ter que “engolir seu orgulho ferido de macho”. Eu discordo. Para mim, ele está sinceramente interessado na amizade dela, porque Caio não é o do tipo que consegue fingir coisas assim. Além disso, Paty é maravilhosa, e eu nem estou falando sobre sua beleza inegável.
            Ela tem o tipo de personalidade atraente da qual ninguém consegue se afastar e, se ela decide que gosta de você e que quer sua amizade, não há virtualmente nada que você possa fazer para resistir. Você simplesmente sucumbe aos encantos dela e fica grata por isso. Simples assim. Foi o que aconteceu comigo e, com certeza, está acontecendo com ele também. E eu gosto muito disso, para falar a verdade.
            Não vou dizer que não me preocupa o fato de ele ser quem é, porque acho realmente que ela está se apaixonando por ele. E embora haja uma parte enorme de mim vibrando com isso, estou apreensiva. Não sei como isso pode funcionar quando ele corresponder — porque acho que pode não ser uma questão de se, e sim de quando — e tenho medo que os dois se magoem.
            Mas, talvez, seja apenas minha própria confusão se projetando na deles.
            Quer dizer, todos esses dilemas que eu imagino para um relacionamento que nem existe ainda, entre uma humana e um anjo que ainda nem se decidiu por isso, são muito mais aplicáveis a mim: com minha condição já definida e meu relacionamento perfeitamente existente. Porque embora ainda seja cedo para tomar qualquer tipo de decisão, não me sinto pronta para abrir mão de minha condição. Ou para contar a verdade a Eric e pedir que ele conviva com isso.
            Consigo até imaginar o quanto seria interessante.
            “Ei, amor, de vez em quando eu tenho que sair e cumprir umas missões que você não entenderia, porque parecem coisas simples e banais para quem não pode ver as consequências delas. Não vai atrapalhar em nada nossa vida, mas, só para você saber, talvez os outros te achem meio estranho quando você for uma velhinho andando por aí com uma moça que parece bem mais nova. Mas não vamos pensar nisso agora, ok? É só o começo do nosso namoro e eu ainda estou pensando no nosso primeiro beijo, que, aliás, foi o primeiro da minha vida. E, ah, por falar nisso, acho que sou um pouco mais velha do que você imagina.”
            É. Seria. De fato. Interessante.
            Assustador seria uma palavra mais precisa.
            Tento me convencer de que não devo, como dizia minha mãe, “colocar o carro na frente dos bois”, mas quanto mais apaixonada eu fico, mais difícil se torna não imaginar como seria meu futuro com ele e... Por Deus! Como estou apaixonada!
            Sempre achei que eu era feliz em minha vidinha tranquila. E ainda acho. Mas o tipo de felicidade que sinto com Eric... Uau! Meu coração parece saltar do peito para encontrar o dele cada vez que o vejo. Às vezes acho que estou flutuando. Há borboletas em meu estômago e a coisa toda sobre a qual sempre li em romances piegas. Basicamente, minhas reações e pensamentos se resumem a um monte de clichês românticos dos quais me sinto incapaz de abrir mão. E tudo em que consigo pensar quando não estamos juntos é em voltar para ele, como se tal necessidade fosse uma verdade tão natural e intrínseca que eu nunca precisasse racionalizar.
            Exceto pelas manhãs, quando ambos cuidamos de nossos assuntos particulares, as tardes têm sido todas dele.            Como naquele dia, Eric chega um tempo antes de me levar para o bar, ficamos juntos em minha casa, rindo e falando sobre coisas banais, brincando com Blue e comendo as bobagens que eu preparo para nós dois, depois, quando não podemos mais evitar, seguimos para o trabalho no carro dele.
            Tudo muito inocente e despretensioso, se você me perguntar, mas acho que é melhor assim. Por enquanto.
            — Nem tive a oportunidade de usar meu carro depois que você o consertou — resmungo no sábado à noite, quando estamos indo para o bar, mas não estou realmente aborrecida com isso. O fato de Eric me levar para o trabalho e depois ter que me dar carona na volta me garante um tempo a mais com ele, embora as despedidas estejam cada vez mais difíceis.
            — Você não quer mais que eu te leve? Quer voltar a ir com seu carro? — Eric pergunta, falsamente ofendido. Ele sabe muito bem que eu tenho adorado esses momentos com ele. Se não fosse capaz de adivinhar pela minha cara de boba feliz, teria sabido porque eu disse. Várias vezes.
            — Não é isso — respondo, roubando um beijo rápido do bico emburrado que ele encena quando para o carro no sinal vermelho. — É só que... Acho que estou ficando mimada. Eu podia dar carona a você um dia destes.
            — E depois de me deixar em casa você voltaria para a sua dirigindo sozinha de madrugada? Rá! Não mesmo.
            — Sim mesmo, oras! Exatamente como tenho feito todas as noites desde que comecei a trabalhar no On the Rocks — respondo desafiadora. — Eric! Você só pode estar brincando, né?
            Ele olha para frente quando o sinal abre, acabrunhado, mas provavelmente ciente de como soou superprotetor e exagerado. Entretanto, se antes estávamos apenas brincando um com o outro, agora ele parece incomodado de verdade.
            — Desculpe, Luz. Eu sei que você consegue se cuidar sozinha, mas agora se tornou problema meu me preocupar, e eu não conseguiria ficar tranquilo com essa resolução. Será que você pode ceder só um pouco desta vez?
            A atitude dele me pega de surpresa. Eu esperava uma espécie de discussão ou algo assim, mas não um pedido tão sincero e desarmado.
            — Claro — respondo, porque não sei o que mais poderia dizer. O que eu conseguiria levando adiante qualquer argumento contrário não é realmente importante para mim. Mas Eric é. E muito. E se é importante para ele... Bom, a matemática é simples.
            Ele me responde com um sorriso agradecido e ficamos em silêncio o resto do percurso, mas quando saímos do carro, já no estacionamento do bar, ele para à minha frente, meio indeciso.
            — Se você quiser voltar a usar seu carro... Não quero impor minha companhia a você.
            — Não. — Tento afastar a seriedade dele com um gesto pretensamente displicente. — Eu nem mesmo estava falando sério, Eric. É claro que eu prefiro estar com você. Por que tanta preocupação?
            — Não é nada de mais. É só que a história dos pneus furados ainda não me desceu. Prefiro deixar seu carro fora do radar por enquanto e me certificar de que você chegue em casa em segurança.
            — Você disse para eu não me preocupar com Esther.
            — E ela me garantiu que não tinha feito aquilo. Mais de uma vez, na verdade. O que me faz imaginar quem foi.
            — Mais de uma vez? Você falou com ela de novo?
            Não gosto disso.
            — Sim — ele diz, com ar de quem se desculpa. — Afastá-la por completo não é tão simples quanto eu gostaria. Mas você sabe que eu farei isso. Minha prioridade, no entanto, é que ela se mantenha longe de você.
            Eu acredito nele. O que estou sentindo não é propriamente ciúme. É um pouco, mas não apenas isso. A ideia de que estiveram juntos “mais de uma vez”, uma única vez que fosse, é detestável por tantos motivos que eu não saberia nem como começar a nomear, porém não há equívoco quanto à potência avassaladora do que sinto.
            Sei que há — nas palavras dele — pendências entre os dois. Eu não supunha que eles fossem simplesmente cortar relações de repente. Mas meu lado irracional meio que esperava que ela tivesse ido para a Groenlândia, ou algum lugar mais longe.
            Ou para o inferno!
            “Foi o que eu quis dizer com ‘algum lugar mais longe’.”
            Sei, mas como seu único lado rude, eu não preciso de eufemismos.
            “Justo.”
            — Não que ela não seja uma cretina mentirosa — Eric continua —, mas realmente algo assim não é o estilo dela. E por que negar a estas alturas? Depois que ela veio aqui com a clara intenção de nos atormentar?
            — Talvez ela queira nos torturar com a dúvida.
            — É. Pode ser. Mas ainda assim...
            — Eric, eu... Tem uma coisa que eu não te contei.
            Encaro seu olhar expectante. Não quero preocupá-lo, mas me ocorreu algo quando ele se perguntou sobre quem poderia ter “atacado” o Fusca. E se espero que as coisas mudem entre nós até o ponto em que possamos compartilhar todas as nossas verdades, mesmo as mais assustadoras, é preciso começar de algum lugar.
            — Alguém tem feito ligações para mim — explico. — Parece uma coisa boba, só uma provocação. A pessoa não fala nada e depois de um tempo desliga. No começo, não dei atenção alguma, achei que fosse alguma brincadeira, mas depois começou a ficar meio sinistro. Aí, na época em que sofri aquele ataque aqui no estacionamento, Teo levantou a hipótese de que era a mesma pessoa e eu acho que ele pode ter razão. E se esse cara, seja lá quem for, voltou aqui e fez aquilo com meu carro? Não sei por que ele faria isso, mas talvez... Sei lá! É possível, não é?
            Há muitas coisas passando pelo semblante de Eric neste momento. As emoções viajam tão rápido por sua expressão que seu rosto fica lívido por um instante e ele parece quase cansado, vergando-se sob o peso de muitos pensamentos de uma vez só.
            — Com que frequência isso acontece? Esses telefonemas? E desde quando?
            — Começaram mais ou menos na mesma época em que vim trabalhar aqui, mas não são muito frequentes. Chego a esquecer deles por um mês ou dois quando, de repente, voltam. A última vez foi na noite em que fizeram aquilo com os pneus. Fiquei um pouco assustada, porque o telefone ficou tocando a madrugada inteira e foi aí que acabei desligando tudo. Eu fui à polícia ontem, mas eles não acham que seja o mesmo cara.
            — Isso é sério, Luz. Se você ficou assustada o suficiente para ir à polícia, acho que eu deveria ter sabido antes. Estamos juntos agora e eu deveria ter ido com você, ter tido a chance de saber o que te afligia. Por que não me contou?
            Eric parece aborrecido e preocupado. Apesar de ter sido um alívio inesperado e intrigante me abrir com ele, começo, ao mesmo tempo, a me arrepender um pouco de ter contado. Além de deixá-lo obviamente alarmado, ele parece irritado com várias coisas. Com o problema em si, certamente, e talvez por eu não ter dividido com ele uma coisa que lhe parece importante.
            — Não sei, eu... — começo a dizer, sem ter muita ideia de que justificativa poderia amenizar as coisas. — Não achei importante. Na verdade, eu não tinha unido os pontos até você mencionar de novo que Esther negou ter furado os pneus. Aí eu pensei que talvez pudesse ser a mesma pessoa. Mas mesmo agora, não tenho certeza se é uma boa teoria.
            Fico olhando para ele, esperando que seu rosto se suavize, mas não acontece.
            — E como Teo sabe sobre os telefonemas e eu não?
            Oh-oh!
            — Ele estava comigo um dia e meu celular tocou. Já faz um tempo...
            — Certo.
            Ficamos quietos por um instante, nos olhando, mas este silêncio não é confortável como os outros que costumamos compartilhar. Nessas ocasiões, as palavras se esgotam porque se tornam desnecessárias. Desta vez é diferente. Elas agora parecem inúteis, improdutivas diante do clima estranho que se formou.
            — Venha — ele diz. — Vamos trabalhar. Está na hora.
            Ele começa a andar em direção ao bar, mas eu o freio, segurando seu pulso.
            — Desculpe. Não estou acostumada a ter alguém para quem contar as coisas.
            — Eu sei. Eu também não. Não tenho exatamente o direito de te cobrar algo assim. Mas eu gostaria de ter estado perto de você quando aconteceu. Como seu amigo estava.
            A entonação que ele dá à palavra “amigo” me faz notar uma coisa pela primeira vez. E agora que percebi, me pergunto como pude ter sido tão tola e omissa a ponto de não ter reparado antes. Teo estava comigo durante o ataque e foi ele que me salvou. Eric sabe disso, assim como se apercebe do interesse do outro por mim. Só que ele não entende que o amor inegável que minhas palavras e gestos deixam transparecer por Teo não é do tipo que ele imagina. Claro. Como é que ele poderia entender?
            — Eric, não há nada entre Teo e eu. Você sabe disso, não sabe?
            Ele assente, depois me dá um sorriso que não chega aos olhos e me puxa pela mão, novamente em direção ao bar. Dá pra ver que ele não quer falar disso, mas eu não consigo evitar.
            — Eric? — chamo.
            — Eu sei — ele diz, e me puxa para si, me abraçando e beijando meus cabelos, mas não meus lábios.

******

            Às vezes, as pessoas têm dias ruins. Ou noites ruins, que seja. E esta está parecendo com uma delas para mim.
            Não é nada muito evidente, porém. Eric se mantém carinhoso e cavalheiro, embora um pouco distante, e o pequeno mal-estar entre nós não é nada que não possa ser resolvido facilmente. Sinto falta da alegria de Paty, que está de folga hoje, apesar de ser um dia movimentado, por causa de uma festa de família; mas Lara está dando conta do trabalho e parece não ter tempo de implicar comigo.
            Estou tranquila, tudo parece tranquilo e normal. Ainda assim, alguma coisa me incomoda. Só uma sensação estranha, que se confirma no fim da noite, quando vejo Caio entrando trôpego no bar e se dirigindo ao balcão. Apesar do som alto que me impede de ouvir o que ele diz a Eric, sei por seus gestos que está pedindo uma bebida. O problema é que, obviamente, não parece ser a primeira.
            Quando consigo cruzar a multidão e me aproximar dos dois, o copo já está sendo posto diante de Caio, que o vira fazendo uma careta. Fuzilo Eric com o olhar, porque neste momento estou cega para qualquer coisa que não seja meu menino que parece já estar caindo de bêbado, mas sei que ele não tem culpa. Isto aqui é um bar, afinal de contas. Só que a consciência disso não alivia meu instinto protetor.
            — Claraaa! — diz Caio, com uma voz que não se parece nada com a sua, sempre tão límpida. Ele me abraça, soltando seu peso sobre mim, e eu sinto o cheiro horrível de álcool enquanto tento me equilibrar para não nos estatelarmos no chão. — Você está tãão boniiita!
            — O que aconteceu? Por que você bebeu tanto? — pergunto, mas ele não me responde. Em vez disso, endireita o corpo e segura meu rosto entre as mãos, me observando com os olhos avermelhados. Não acho que ele esteja realmente pensando em algo coerente, mas consigo detectar uma intenção nascente que condiz com o jeito como ele me toca.
            Acho que Eric também nota, e pela minha visão periférica vejo-o contornar o balcão e se aproximar. Quero olhar para ele e pedir que se acalme, mas Caio ainda está segurando firme meu rosto, então apenas levanto a mão na direção do meu namorado irritado, num sinal para que se afaste, mas é claro que não adianta. Caio percebe meu movimento e olha para Eric, sorrindo de um jeito amargo.
            — Você deve ser bom, cara. Muito bom mesmo. Porque isso foi rápido. Deve tratar ela bem... Você a trata bem, não é? Ele te trata bem, Clara? — Ele se volta um segundo para mim para fazer a pergunta, mas quase no mesmo instante olha novamente para Eric. — Por que se não tratar, eu quebro sua cara.
            — Você poderia tentar. Por que não vamos lá fora agora e você me mostra o que tem?   
— Eric, por favor.
            Os olhos azuis dele estão escuros agora, chispando farpas de um ódio contido. Não gosto da energia tensa que me atinge e meu instinto é proteger Caio desse Eric desconhecido e meio assustador.
            — Deixa que eu cuido disso — peço. — Você está indo embora, não é, Caio? Vou chamar um táxi para você.
            — Nãããoo — ele ri, balançando a cabeça de um lado para o outro. — Não estou indo embora, não. Estou esperando uma amiga. Ela está... Não sei onde ela está. Deve estar por aí, porque ela gosta de mim. Sabia, Clara? Tem gente que gosta de mim.
            — Que bom pra você — Eric intervém. — Pois pegue sua amiga imaginária e vá para o colo da mamãe, porque sua babá não tem tempo para você agora. Sua bebida é por conta da casa, garotinho. — Ele se vira para mim e me lança um olhar duro e cortante feito diamante. — Livre-se dele por bem, Clara.
            Quando ele me dá as costas e volta para trás do balcão, concentrando-se em controlar a raiva evidente, é que suas palavras me atingem de verdade. E em cheio.
            “Livrar-me dele por bem?” O que isso que dizer? Que se eu não tirar Caio daqui, ele vai fazer isso de um jeito que eu não vou gostar?
            Eis outra verdade que descubro sobre o amor esta noite: quanto mais apaixonada se está por alguém, mais intensos todos os outros sentimentos são. Mais rapidamente emoções como a raiva podem entrar em ignição e, se lhe for dada vazão, queimar tudo ao redor e se extinguir, tão rapidamente quanto se acendeu.
            Entretanto, eu não permito que esse incêndio se levante. Não dou vazão, porque não consigo. Lidar com isso, sentir algo assim pela primeira vez, é mais do que posso aguentar neste momento. Pelo menos enquanto Caio está aqui nesse estado e Eric parece tão disposto a fazer uma besteira que pode me magoar irremediavelmente.
            Caio ainda está com um dos braços em meu ombro e o peso quase todo apoiado sobre mim. É difícil movê-lo, por isso fico grata quando ele não impõe nenhuma resistência enquanto o levo até uma mesa que acabou de vagar e o coloco sentado em uma das cadeiras.
            — Fique aí um pouquinho que eu já volto, ok? — digo, enquanto ele me olha com expressão ausente. — Promete?
            Um sinal de positivo é a melhor resposta que consigo, então decido não perder mais tempo e pegar meu celular no armário onde o deixei, assim posso ligar para meu amigo taxista, a quem recorro nestas horas. Faço a ligação do corredor mesmo, para abafar um pouco o barulho do bar, e João, que já está acostumado com o que chama de “bêbados da Clara”, promete vir logo.
            Volto para a mesa para dar a notícia a Caio, mas a engulo no mesmo momento, junto com todas as minhas outras palavras e com qualquer resquício de esperança de que a noite ainda possa acabar bem. Porque enrolada ao pescoço de meu garoto tolo e inebriado está a própria encarnação da serpente. Esther.
            — C-Caio?
            Sério mesmo? Tinha que gaguejar?
            — Ah, oi, querida — diz a maldita voz sussurrante, fingindo surpresa. — Chame-o de Teo, ele gosta mais. — Ela dá uma risadinha irritante e pisca para mim, mordendo o lóbulo da orelha dele, que se encolhe todo.
            Está claro para mim agora por que ele chegou aqui neste estado. Em toda a minha vida, eu nunca soube o que era odiar alguém, mas essa mulher faz coisas comigo. Tenho vontade de segurá-la pelos cabelos e arrastar a cara dela por toda a Muralha da China.
            — Caio está indo para casa — digo para ela. — Acabei de chamar um táxi para ele.
            — Mas imagina só! Eu o trouxe, eu o levo para casa. Não é, coração?
            — Não quero ir para casa — ele responde. — Quer parar de decidir as coisas por mim, Clara? Você decide tudo por mim.
            Ouvir isso dói. Não tanto pelas palavras em si, mas pelo tom acusatório com que são ditas. No entanto, só o que essa dor faz é renovar minha determinação de terminar este encontro desagradável. Apesar de todas as outras coisas que arranham as fronteiras de minha estabilidade emocional neste momento, há um único pensamento em minha mente: mandar Caio para casa, para junto de Marina e para longe dessa mulher desprezível. Não me importo de ser acusada de decidir as coisas por ele se a decisão for essa.
            — O que pensa que está fazendo aqui com esse fedelho? — Ouço a voz de Eric atrás de mim. Não preciso olhar para ele para saber que está com raiva, sinto meu corpo vibrar com a energia que emana do dele e meu estômago se revira. O efeito é assustadoramente poderoso. — Pensei que tinha dito que não queria mais ver você aqui.
            — E você já disse coisas rudes assim tantas vezes que perdi a conta — ela responde desafiadora. — Sorte que com você nunca fica monótono.
            Um muro. Só um. De concreto bem áspero, por favor.
            — Por que esse cara está falando assim com você, Esther?  — Caio interfere, parecendo sair de seu torpor alcoólico. — Que conversa é essa?
            — Não é nada, gato. Vamos embora, enquanto isso ainda está interessante.
            — Tanto faz. — Ele dá de ombros. — Nem chegou a ficar interessante para mim.
            — Desculpe, lindinho. Vamos para algum lugar realmente divertido.
            Ela se levanta e dá apoio para que ele faça o mesmo. Meu instinto imediato é ajudar Caio a se firmar, mas a necessidade de chegar perto de Esther para poder fazer isso faz a bile subir à minha garganta, tanto quanto a perspectiva de deixá-lo ir embora com ela.
            — Caio não vai a lugar nenhum, Esther. Ele não está em condições. E, como eu disse, chamei um táxi para levá-lo para casa.
            — E, como eu disse, ele vai comigo.
            — Não, não vai.
            Agarro o braço dele e puxo-o em minha direção. O que, francamente, não é uma coisa muito sensata a fazer, porque se ele estivesse distraído e não conseguisse se manter em pé, certamente iríamos os dois para o chão, mas isso não acontece. Desta vez, ele está firme o suficiente para reagir e é isso o que faz, puxando o braço e se soltando de mim.
            — Pare de me tratar como criança.
            O olhar dele é como um soco no meu estômago. Aliás, a cena toda, desde o ódio borbulhante e silencioso de Eric até o sorriso mal disfarçado de Esther, é como uma surra. A estas alturas, estou no lucro se nada dentro de mim se quebrar.
            — Por favor, Caio. Fique. Ao menos até estar mais lúcido. Podemos pedir algo para você comer e um refrigerante. O açúcar vai te fazer melhorar. Esther fica com você.
            Não quero realmente que ela fique, claro. Para falar a verdade, prefiro engolir um pedaço de madeira com um prego atravessado a ter que aguentá-la por todo o tempo que ele precisa para melhorar, mas preciso reduzir minhas perdas. E é melhor garantir que ele esteja ao menos um pouco sóbrio se for sair daqui com ela. Não que eu pretenda desistir de enfiá-lo em um táxi para casa, mas, para isso, ganhar tempo também será útil.
            Meu pedido sincero parece tê-lo abalado um pouco, e estou certa de que ele está considerando, quando Eric interfere:
            — Não. Esther não é bem-vinda aqui e vocês não vão ficar.
            — Escuta aqui... — Caio começa a reagir, mas Esther o para, segurando-o e fazendo cara de coitadinha. Ela cochicha algo em seu ouvido e os dois se põem em movimento. — Tchau, Clara. Deixa o refri para outro dia.
            Tento ir atrás deles, mas Eric me segura.
            — Não — ele diz. E nunca imaginei que pudesse sentir tamanha ira e frustração direcionadas a alguém tão importante para mim. Mas é assim que as coisas são, ao que parece. A paixão fica a um passo do ódio e tudo o que se precisa é do empurrão adequado, daquela coisa que vai te fazer sair do sério de verdade e começar o incêndio.
            — Me solte.
            Não puxo meu braço, como Caio fez comigo. Apenas espero que Eric faça o que se deve, porque quero saber por quanto tempo ele pretende me manter cativa de sua vontade. Eventualmente ele me solta, mas a multidão já se fechou em torno de Esther e Caio há tempo suficiente. Não posso mais alcançá-los.
            Corro para o estacionamento dos clientes, mesmo sabendo que é tarde demais e, de lá mesmo, pego o celular e ligo novamente para João. Preciso avisá-lo de que o passageiro programado desistiu da corrida, mas que preciso que ele me leve para casa no fim da noite.
            As horas até lá se arrastam num silêncio que nem a música alta do bar é capaz de abafar. Quando chega o momento, penso que Eric vai me pedir para ficar, mas isso não acontece. Da janela do táxi, vejo-o vir até a porta dos fundos e me observar de longe. Antes que o carro onde estou suma de vista, porém, ele volta para dentro, fechando a porta atrás de si.


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