sábado, 17 de outubro de 2015

ELS Cap 32

Capítulo 32 – As Coisas que Acontecem

When your day is long and the night
The night is yours alone
if you're sure you've had enough of this life
Well hang on
Don't let yourself go, 'cause everybody cries
and everybody hurts, sometimes ...

(…)
'Cause everybody hurts
Take comfort in your friends

(Everybody Hurts – REM)


            A voz de Marina me acorda às 4:23 da manhã. “Aconteceu uma coisa”, ela diz e está chorando muito. Fernando pega o telefone e me passa o endereço para onde dirijo quase às cegas, grata por não me perder mesmo sabendo o caminho de cor.
            “Aconteceu uma coisa. ”
            As palavras ficam se repetindo num ciclo infinito e destrutivo dentro de minha cabeça, esmigalhando todos os meus pensamentos coerentes e abrindo espaço para as imagens horrendas que se prendem ao lado de dentro de minhas pálpebras. Elas me machucam e me impedem de fechar os olhos para me defender da dor. Espantar o mundo lá fora não é mais uma opção quando o meu próprio não é mais seguro.
            Sangue. Os quadros horríveis que vejo estão pintados de vermelho-sangue.
            Assim que chego ao hospital, Marina se agarra a mim. É como antes, quando precisávamos uma da outra e eu era a única pessoa que ela tinha. Acho que é porque ainda preciso dela tanto que este abraço amedrontado me torna ainda mais consciente de tudo o que posso perder. Neste momento, nada mais importa, a não ser segurar-me a ela também, desejando poder tomar sua dor e sua aflição para mim.
            Fernando se aproxima e eu o vejo, por sobre o ombro de Marina, me observar com olhos cansados e tristes. Tem algo de estupefação também, como se só agora ele tivesse entendido de verdade o que ela certamente lhe falou sobre nossa história. Sei que ele tem muitas perguntas, mas não vai fazê-las neste momento. Eu também não digo nada, apenas lhe dou o direito ao pasmo que lhe causo.
            Ainda consigo sorrir para ele, porém. Porque mesmo em uma situação em que sorrisos parecem antinaturais, não é assim com aquele homem que já me parece tão familiar. Principalmente quando ele também me sorri, contidamente, dolorosamente, em reconhecimento. Sabe que amamos as mesmas pessoas, e que isso nos torna personagens da mesma história.
            Sentamos juntos no sofá da sala de espera enquanto ele me conta que, não muito longe da saída de um clube noturno, uma moto atingiu Caio em cheio, quebrando suas costelas e rompendo seu baço, fazendo com que ele sangrasse por dentro, como parecia que eu sangrava agora imaginando a cena. Ele foi deixado ali, sozinho, e teria morrido se alguém que viu o motoqueiro se levantar trôpego e fugir do local não tivesse chamado socorro imediato.
            Marina aperta forte minha mão, e eu a dela, quando as palavras de Fernando desenham para mim as cenas que doem em nós três. Conto a eles sobre Esther e sobre o Caio embriagado e arredio de mais cedo. Sobre como ele não aceitou o táxi para casa e parecia disposto demais a se sujeitar às vontades da “amiga”. Eles me olham incrédulos, tão certos de que aquele não é o filho que conhecem, como de que agora não importa mais. Que mesmo que ele tenha atraído aquilo, tudo o que queremos é que as coisas terminem bem. Da maneira como teriam terminado se aquela mulher não tivesse cruzado seu caminho.
            Imagino o momento em que ela o deixou sozinho e fora de si, completamente incapaz de cuidar de si mesmo, e quando ele deve ter tentando ir para casa a pé, sem, no entanto, dar conta dos passos de suas próprias pernas. Tenho vontade de voltar no tempo e impedir, em todos os momentos e de todas as formas que teriam sido possíveis, que ele saísse do On the Rocks com aquela...
            Sim, eu a considero culpada. Ele é adulto o suficiente para se responsabilizar pelos próprios atos e eu não o estou eximindo disso. Ninguém o forçou a beber. Mas, no momento, não consigo enxergá-lo dessa maneira. Enquanto estou aqui, na companhia de seus pais aflitos, limpando inutilmente as lágrimas que escorrem sem parar pelo rosto de Marina, ele é só um garoto. Meu garoto. Deitado em uma maca, passando por uma cirurgia de emergência quando a lembrança de sua vivacidade é mais recente do que a última vez em que vi a luz do dia.
            Porém, por mais escura que a noite pareça, eventualmente chega a manhã. Fernando vai ligar para o amigo que ficou cuidando da filhinha deles, enquanto Marina e eu ficamos dividindo o silêncio da aurora numa sala de espera de hospital. É como se o dia amanhecesse diferente aqui. Como se o tempo corresse pelos trilhos quebrados de uma paisagem estranha que se força a parecer normal. De repente, ela parece se lembrar de alguma coisa.
            — O homem que chamou a ambulância, eu esqueci! — ela diz, fungando um pouco. Seus olhos estão secos agora, mas qualquer um que a veja pode perceber o quanto chorou. No entanto, neste momento em que está mais calma, parece ter conseguido trazer uma coisa qualquer à tona.
            — Esqueceu o quê? — pergunto, sem ter a mais mínima ideia de aonde ela quer chegar.
            — De te contar... foi muito esquisito nosso encontro. Quer dizer, não ele, que foi extremamente gentil. Veio na ambulância com meu filho e esperou aqui por nós, para tentar nos tranquilizar. Ele nem precisava fazer nada disso, mas, além de tudo, ainda disse que se colocava à nossa disposição para qualquer coisa, que ia voltar para o hotel em que estava e descansar um pouco, porque tinha chegado há pouco de viagem, mas que podíamos ligar para ele a qualquer momento se precisássemos.
            Eu até era capaz de entender como algo assim podia causar estranheza nas pessoas. Infelizmente, vivemos numa época pouco generosa. Mas no meu mundo não era algo anormal. Seria exatamente o que eu faria.
            — Gentil mesmo. Mas as pessoas boas existem, Marina. Eu não estranho, na verdade. Só fico feliz que alguém assim tenha aparecido na hora certa.
            — Sim, eu também. Concordo plenamente. A verdade é que depois do que você fez por mim eu meio que me acostumei com o fato de que há bondade e gentileza no mundo, mas não foi isso que eu achei esquisito, foi a coincidência.
            — Que coincidência?
            — Ele estava indo embora, mas quando eu disse meu nome, na hora em que nos despedimos, ele se surpreendeu. Aí ficou me olhando um pouco e disse que me reconhecia das fotos...
            — Fotos?
            — Sim, que ele viu em sua casa.
            — Como é?
            Eu quase não tenho fotos. Na verdade, as evito a todo custo. Só tenho algumas de meus pais e outras tantas que trouxe comigo quando fui embora da casa que deixei para Marina. Eu as peguei para não correr o risco de deixar minha imagem registrada e alguém topar comigo e me reconhecer. Mas não me livrei delas. Achei que não ofereciam perigo se ficassem guardadas comigo. E por isso mesmo eu nunca as mostrei a ninguém, exceto...
            — Alberto? Por acaso esse homem disse que se chamava Alberto?
            Será mesmo?
            — Sim. Alberto... — Ela franze o cenho, tentando se lembrar. E então meu coração se abre como uma flor quando ouço a resposta: — Sampaio, eu acho. É. Isso mesmo. Alberto Sampaio.
            Meu Deus!
            Minha mente se enche de perguntas, mas a alegria que sinto é suficiente para preencher as lacunas. Claro que quero saber por que ele não me avisou que estava na cidade ou por que decidiu vir agora, como se soubesse que preciso dele hoje mais do que nunca. Mas a verdade é que não importa. Ele está aqui. Cuidou de Caio e, de certa forma, também de mim. Mesmo consideradas as circunstâncias em que nos reencontraremos, estou muito feliz por tê-lo de volta.
            — Não foi coincidência, Marina. Ele estava na hora certa e no lugar certo porque veio aqui nos ajudar. Alberto é o meu anjo.

            Quando Fernando volta, conto a eles tudo sobre Beto. Os dois me questionam se ele não poderia ter interferido antes e evitado o acidente, e é difícil explicar que não está ao nosso alcance saber por que o Chamado determina que evitemos certas coisas e outras não. Às vezes, como agora, eu também não entendo e queria que fosse diferente, mas a trama das coisas não nos pertence e não nos resta remédio senão aceitar isso. Eventualmente, eles conseguem lidar com a ideia, embora ainda pareçam um pouco confusos e frustrados, e eu os deixo com suas cogitações para fazer o que estava louca para fazer desde que ouvi o nome dele hoje: ligar para Alberto.
            — Bom dia, minha Estrela — ele diz assim que atende, como se estivesse esperando a ligação, e provavelmente estava. — Como está o menino?
            — Na sala de recuperação. Logo que possível vão trazê-lo para o quarto. Ele vai ficar bem.
            Conhecendo-me como conhece, ele certamente pode sentir o alívio em minha voz. E eu, o sorriso na dele.
            — Que bom. Embora eu não esteja surpreso, é um conforto saber. Senti que ele ia ficar bem. Não teria razão para eu estar lá se não fosse esse o caso.
            — Você ouviu o Chamado?
            — Sim. Alto e claro. O que é curioso...
            — Curioso? Por quê?
            — Explico depois, quando nos encontrarmos. Tirei uns dias para te ver, temos muito para conversar.
            — Mas, Beto... Por que você não me ligou? E por que está em um hotel em vez de hospedado na minha casa?
            — Eu queria fazer uma surpresa — ele ri, com o ar de menino que um século inteiro não foi capaz de apagar. Sempre teve essa mania de surpresas, e não posso dizer que acho ruim, mas ficar alegre em antecipação pela vinda dele faz mais meu estilo. De qualquer jeito, não vou me queixar. — Além do mais, não achei prudente chegar de mala e cuia e me hospedar em sua casa agora que você tem namorado.
            Eric. Toco mecanicamente o pingente de âmbar em meu pescoço e uma sensação opressiva preenche meu peito. Toda a raiva e o ciúme que senti desapareceram por completo, mas em seu lugar sobrou um gosto ruim em minha boca, pela maneira como as coisas ficaram entre nós. Ou não ficaram. Nem sei o que pensar. É a primeira vez que algo assim acontece comigo e, de repente, as dúvidas me assaltam. Será que ele ainda está bravo? Magoado? Será que é cedo ou tarde demais para procurá-lo? De todo jeito, não vou falar sobre isso com Alberto. Não agora.
            — E por que você não ficou aqui ou me avisou sobre o que tinha acontecido com Caio? — pergunto em vez disso. Porque essas também são coisas que quero saber.
            — Seria estranho eu ficar, era um momento de família. E quanto a te avisar, eu sabia que Marina ia te ligar se quisesse sua presença. Do mesmo jeito que sabia que, caso eu te avisasse antes, você correria para o hospital, mesmo que ela não quisesse. Resolvi deixar que ela decidisse. Eu ia te procurar hoje, assim que acordasse, e se você não soubesse eu te diria e iria com você até aí, mas achei melhor que fosse quando as coisas já estivessem mais calmas para ela.
            Neste ponto me lembro porque o amo tanto. Alberto tem que ser Alberto. O tipo de pessoa que pensa em tudo e em todos, que considera todos os ângulos de uma situação, mas que sempre toma suas decisões finais considerando aquele que, dentre os envolvidos, mais precisa de ajuda. Ele não conhece Marina, mesmo assim soube melhor do que eu qual decisão tomar pelo bem dela. E, no fim, pelo meu também.
            — Tem razão — admito. — A prioridade deveria mesmo ser Marina e Fernando. E, pelo que conheço dela, foi melhor assim. Aparecer sem ser chamada naquele momento poderia ter tido um resultado desastroso.
            — Creio que sim, Clarinha. Por um tempo, você vai ter que se conformar em ter, na vida dela, o lugar que ela te der. Mas veja só como as coisas caminham naturalmente para onde devem ir: você está aí ao lado dela. Porque ela quis. No momento em que mais precisou, Marina soube onde encontrar apoio.
            É impossível não sentir meu coração se aquecer quando me dou conta disso. Antes que o médico viesse nos informar sobre a cirurgia, eu não conseguia pensar em mais nada que não fosse Caio, mas agora que a tempestade se foi, consigo me permitir um raio de sol. E os anos de solidão que ele derrete em mim já não se parecem mais com as neves eternas que, nos dias mais escuros, cheguei a acreditar que fossem.
            — É, acho que foi isso mesmo. Você sempre tem razão. É irritante — provoco, porque essa é uma antiga brincadeira nossa. Ou minha, para ser exata. Porque é verdade que ele costuma ter razão em tudo, só que eu não me irrito com isso. Pelo contrário, acho reconfortante. Mas em vez de só reconhecer, acaba sendo mais divertido parecer uma irmã manhosa. Ele sempre acha engraçado.
            Só agora percebo o quanto meus músculos estavam retesados, e ouvir a risada gostosa dele me ajuda a relaxar um pouco. Posso sentir os nós de tensão começando a se desfazer e deixando uma dor incômoda no lugar. Isso sem contar que mal cheguei a dormir mais que uma hora hoje. Mas estou aliviada e quase feliz. Se comparado a como eu estava me sentindo há algumas horas, é praticamente o céu. Tenho muito pelo que ser grata.
            — Senti sua falta mais do que nunca nos últimos meses, Beto.
            — Eu sei. Foram meses agitados para você. E eu sou o primeiro em quem você pensa para resolver seus problemas.
            Embora seja verdade, sei que ele está dizendo isso para me insultar, sabendo que esse tipo de “acusação” sempre termina em um elogio da minha parte, ou no reconhecimento puro que neguei há pouco. Mas estou me sentindo subitamente bem-humorada, e resolvo dificultar um pouco a vida dele.
            — É bem por aí mesmo. É mais fácil me lembrar de você nesses momentos. Caso contrário, acabo me esquecendo.
            — Ah, é assim, sua malcriada? — ele diz, entrando no jogo com a facilidade de sempre. —Desaprendeu que os mais velhos merecem respeito?
            — Os muito mais velhos, você quer dizer, né? Desculpe, Senhor Sampaio. Realmente, os anciões merecem um tratamento mais cuidadoso.
            — Má influência. Só pode ser má influência. — Posso até vê-lo balançando a cabeça com cara de descrença fingida. — A gente faz tudo pelos mais jovens e olha só o que ganha em troca! Vou ter que conversar com essas pessoas com quem você anda saindo.
            A brincadeira me traz de volta à realidade, porque percebo que, desta vez, as pessoas “com quem ando saindo” são mais importantes do que eu jamais poderia prever que seriam. Os laços que estou forjando aqui me parecem cada vez mais permanentes. Antes, a única constante de minha existência era Alberto, mas agora... Agora tenho uma vida aqui. Como quando conheci Marina há vinte anos. E pensar nos dois fazendo parte do mesmo cenário! Um em que também estão presentes Eric e Paty... É como se as melhores partes de minha vida estivessem se conectando.
            É lindo. E assustador também.
            — Falando sério, quando vou te ver? — pergunto, porque o frio na barriga só faz aumentar a saudade.
            — Falando sério, à hora que você quiser. Estou aqui por você, Clara. Mas acho que hoje é melhor você se concentrar na sua família. Fique com sua menina, eu posso esperar até amanhã para ver a minha.
            Sorrio. Alberto sempre consegue arrancar de mim sorrisos inesperados. Ou talvez eles só fiquem esperando por ele para acontecer.

********

            Caio não fica muito tempo acordado. Por causa da anestesia, ele está sonolento e confuso. Abre os olhos de vez em quando e balbucia algumas coisas aleatórias e meio sem sentido, mas nota-se que suas pálpebras estão pesadas e que é difícil mantê-las abertas por mais do que alguns minutos. No entanto, é melhor assim.
            Quando está acordado, uma das poucas coisas coerentes que diz é que está com dor, o que deixa Marina em frangalhos, por mais que ela tente disfarçar. Fernando está se desdobrando entre a própria preocupação de pai e a necessidade de acalmá-la, então eu tento fazer isso, dizendo que é normal sentir dor depois de tudo o que aconteceu e que ele vai ficar bem. Obviamente, não adianta muito. Ela está fragilizada, cansada e todos os seus pensamentos giram em torno do que Caio está sentindo. Dizer a ela que ver o filho sofrer é natural não parece muito consolador, nem tampouco lógico. Ainda assim, sinto que minha companhia acaba sendo, de qualquer forma, uma espécie de conforto.
            Infelizmente, as regras do hospital não permitem três pessoas no quarto. Fernando saiu um pouco para que eu pudesse entrar e depois, quando ninguém estava olhando, se esgueirou de volta, de maneira que fico com eles enquanto consigo, mas sei que, eventualmente, terei que partir. A hora chega quando uma enfermeira — gentil o bastante para fingir acreditar que não sabíamos das regras — avisa que um de nós precisa sair.
            Vou para casa depois disso, cuidar de Blue e tentar descansar um pouco, mas é tudo em vão. Não consigo relaxar o suficiente para me deitar e quando tento me alimentar a comida não desce. Os quadros terríveis que imaginei quando o telefone tocou ainda estão pregados em meus olhos e, agora que estou longe, não consigo convencer meu coração de que está tudo bem com os três.
            Toda aflição que sufoquei para tranquilizar Marina parece ter aflorado agora que estou sozinha e posso dar atenção à minha própria dor. Por fim, tudo em que consigo pensar é que fui embora cedo demais, que devia ter ficado lá, mesmo que na sala de espera, para ajudá-los caso precisassem de alguma coisa. Para ver Caio por mais cinco minutos, talvez. Para estar, enfim, à disposição das pessoas que ocupam meu pensamento, em vez de à mercê da angústia que me toma agora que estou longe deles.
            Até Blue, sempre tão brincalhão, parece sentir alguma coisa no ar e fica à minha volta, tentando me consolar, mesmo sem entender por quê. E enquanto ele me olha com seus grandes olhos amorosos e me dá lambidinhas de um jeito tão preocupado quanto um cãozinho pode ficar, tomo a decisão mais óbvia.
            Tento me mostrar alegre para que ele não sinta a tensão no ar, mas é desnecessário, porque ele percebe sozinho que minha disposição mudou e trata de comer a ração que ofereço, parecendo bem mais tranquilo. Certifico-me de que ele esteja bem alimentado e depois vou tratar de mim mesma.
            Consigo me forçar a tomar um copo de leite e a comer um sanduíche, do jeito que Marina gostava. Então, com isso em mente, preparo um lanche para ela e para Fernando, porque pretendo conseguir que eles comam também. Depois tomo um banho rápido e encontro o telefone de um serviço de hospedagem para pets, onde deixarei Blue. Não é muito barato, mas não quero me preocupar que ele esteja aqui sozinho o dia todo, então a decisão é rápida.
            Não preciso avisar ninguém no bar, porque hoje é minha folga, mas decido ligar para Paty. Ela fica arrasada e combinamos de nos encontrar no hospital durante o horário de visitas, para entrarmos juntas. Não digo a ela que já estive lá ou que pretendo passar o resto do dia acampada na sala de espera. Em vez disso, digo que ele acordou e pediu à mãe que avisasse a nós duas. Talvez ela perceba algo da minha mentira quando estivermos na presença dele, mas deixo para me preocupar com isso quando chegar a hora.
            Penso em ligar para Eric também, mas não estou preparada para dizer as coisas que ele precisa ouvir, por mais que eu queira dizê-las. Acabei pensando muito na noite de ontem e, agora que consigo me distanciar do momento o suficiente para enxergá-lo com mais clareza, percebo o que ele deve ter sentido quando me viu tão preocupada, disputando Caio com Esther e me irritando tanto com sua interferência.
            Gostaria de não ter ficado tão nervosa a ponto de ir embora sem falar com ele, mas a verdade é que não consegui, naquele momento, me colocar no lugar de Eric. Agora, porém, consigo perceber que, da forma como ele vê, eu agi como se estivesse com ciúmes de Caio. E tê-lo ignorado pelo resto da noite, demonstrando minha irritação, certamente só fez reforçar essa impressão.
            Sinto que preciso desfazer isso, mas não estou nem perto de poder explicar a Eric que meus sentimentos por Caio não são do tipo que ele imagina. Dizer que Caio é apenas um amigo querido não é algo que soaria convincente agora, quando estou prestes a dedicar as próximas horas à promessa de ter ao menos uns minutos com ele.
            Ainda assim, mesmo sem saber o que dizer, sinto vontade de dizer alguma coisa. Olho para o celular, indecisa. Sei que não é o tipo de coisa para se conversar ao telefone, mas não sei quando vou vê-lo de novo e, de repente, cada minuto sem ouvir a voz dele, sentindo que posso tê-lo magoado, me parece longo demais para aguentar. Por fim, cedo ao impulso e ligo, a expectativa crescendo dentro de mim como se o som dos toques da chamada fosse ficando mais alto até se tornar ensurdecedor.
            Ele demora a atender e eu fico imaginando se está olhando para a tela, tão indeciso quanto eu estava há pouco, pensando se quer ou não ouvir minha voz. Minha própria decisão começa a enfraquecer à medida em que começo a sentir cada toque como algum tipo de pancada que vem de dentro. Já estou prestes a desligar quando ele atende e minha respiração fica suspensa.
            — Oi. — Seu tom é cuidadoso, quase hesitante, mas a voz dele cola-se em mim como sempre. Minha canção. O som faz meu coração bater forte em antecipação. Entretanto ele não diz mais nada.
            — Oi — respondo.
            — Como você está?
            Não é uma pergunta mecânica, dá para perceber. Ele realmente quer saber como estou, antes de falarmos sobre qualquer outra coisa. Reparo pela primeira vez que ele sempre faz isso e a percepção me comove. Sinto vontade de dizer tantas coisas que nem sei como começar. Nem mesmo faço ideia de como responder a pergunta que ele acabou de me fazer.
            — Bem — simplifico, mas então uma ardência de lágrimas contidas toma conta de meus olhos. Hesito por alguns instantes, pensando nas próximas palavras. — Eu... Ahn... Não, na verdade, não. Não estou tão bem. É o Caio, ele... sofreu um acidente e está no hospital.
            De repente, não consigo me conter. Eric me faz sentir uma estranha compulsão de dizer-lhe a verdade. Como se eu não conseguisse construir barreiras quando sinto a preocupação em sua voz. Ele fica em silêncio uns instantes, processando a informação. Quando volta a falar, seu tom parece ainda mais cuidadoso do que antes.
            — Como aconteceu? Alguém mais... — Ele para por um instante, tentando reorganizar suas perguntas. Ouço quando ele solta uma respiração lamentosa e contida, e sua voz fica mais baixa. — Seu amigo vai ficar bem, Luz?
            — Sim, acho que vai. Ele passou por uma cirurgia no início da manhã, mas já está no quarto. Estava bêbado demais, andando sem cuidado por aí, e acabou sendo atropelado por uma moto.
            — Uma moto? Sabem quem foi?
            — Não, a pessoa fugiu sem prestar socorro.
            Ficamos em silêncio de novo. As lágrimas que eu estava contendo começam a deslizar de forma lenta, mas persistente por minha pele. De alguma forma, acho que ele sabe.
            — Sinto muito, amor — sua voz doce me reconforta, e as palavras parecem querer dizer mais do que aparentam.
            — Eu também — respondo com a voz embargada. — Sinto muito mesmo.
            Fico ali parada, desejando poder voltar para a tarde de ontem, quando estava aconchegada em seus braços enquanto ele zombava de um filme que passava na TV. Antes das coisas ruins acontecerem e da realidade de hoje fazer nossa outra parecer um sonho.
            — Me diga o que fazer, Clara. Diga o que você precisa e eu farei. Só não chore quando não posso estar aí ao seu lado para te consolar. Me deixa louco.
            — Desculpe. Não quero preocupar você.
            — Não acho que tenhamos essa opção. Eu me preocupo de qualquer jeito.
            — Não precisa, estou bem. Só foi um dia emotivo. Mas você me faz sentir melhor. Falar com você me acalma.
            — Estou indo aí vê-la. Me dê uns 20 minutos, ok?
            Por um momento, tudo o mais some ao meu redor. Só consigo sentir a necessidade urgente de dizer “sim”. Quero tê-lo ao meu lado e relaxar em sua presença. Quero dizer a ele que o mundo é perfeito quando ele está comigo. Mas o mundo não está perfeito e não posso relaxar. Preciso estar lá para Marina. Não me sentiria eu mesma se não o fizesse.
            — Vou ao hospital.
            — Claro — ele diz, depois de um segundo. — Vá ver o seu amigo. Me procure quando... quando precisar. Pode ser a hora que for, é só dizer uma palavra e estarei aí, se você quiser. Ou busco você onde estiver.
            — Obrigada, Eric.
            — Só quero que você fique bem.
            — Vou ficar. — O silêncio que paira entre nós está impregnado de palavras não ditas, mas parece não ser o momento para nenhuma delas. — Eu não quero desligar, mas preciso.
            — Eu sei, Luz. Está tudo bem. Nós nos falaremos depois. Vá fazer o que você precisa.
            — Certo. Eu só...
            — O quê?
            — Senti sua falta.
            De repente, preciso que ele saiba disso. Mesmo que a consciência do quanto só tenha me atingido há pouco. Em meio a todas as coisas que aconteceram hoje, a todos os sentimentos e urgências que me povoaram, eu nem tinha me dado conta de quantas vezes a imagem dos olhos tristes dele tinha ocupado meus pensamentos. Mas agora, ouvindo a compreensão em suas palavras doces, seu claro desejo de me manter segura e de estar aqui para mim, o entendimento se torna inescapável. As palavras crescem em minha garganta e precisam sair para que eu respire.
            — Eu também — ele responde, e meus olhos se fecham para absorver o som. — Bye, my sweetheart.
            — Bye, my love — sussurro de volta, mas ele já desligou.
            O alívio que me invade faz a dor em meu peito sumir. Seguro novamente o pingente, acariciando a lembrança de nós dois e sentindo meu coração ficar mais leve. Quando liguei para ele, eu não sabia direito o que estava fazendo, mas agora percebo que era tudo o que precisava. Eric me fortalece. A presença dele. A voz. As palavras. A intenção por trás de cada uma delas.
            Em tão pouco tempo, ele se tornou mais necessário do que eu jamais poderia prever, do que eu jamais me permitiria se tivesse escolha. Deixei que ele criasse essa bolha ao meu redor, este mundo só nosso onde posso me sentir segura quando estou frágil. Por causa dele. Só por causa dele.
            Sei o quanto isso é perigoso, nunca me esqueci da minha impressão naquele primeiro dia. A de que ele era um abismo irresistível. E ele continua sendo. Mas por razões que ainda apenas meu coração reconhece, ele é também meu salto de fé. Aquele que só agora eu sei que sempre estive disposta a dar.

********

            Ainda falta algum tempo para o horário de visitas quando chego ao hospital, entretanto não preciso ficar esperando para poder ver Caio. Encontro Fernando de saída para ver a filha e descansar um pouco, para poder voltar mais tarde. Agora mais tranquilos, ele e Marina já acertaram os horários para se revezarem, cada um cuidando de um dos filhos.
            — Ela está irredutível quanto a passar esta primeira noite aqui — ele me conta, mas nem precisava, porque eu tinha certeza de que ela não arredaria pé enquanto pudesse evitar. — Mas consegui convencê-la a dar uma passada rápida em casa mais tarde. Vai fazer bem a ela sair um pouco daqui. Então, lá pelas 6 horas, eu volto para que ela possa ir jantar com a Clarinha. Quem sabe assim ela come alguma coisa.
            Entendo a preocupação dele. Marina se recusa a comer quando está nervosa. Já era assim quando a conheci e, pelo visto, não mudou. Eu ficava louca de preocupação, até que descobri sua fixação por sanduíches de pão francês com omelete de legumes no meio. E dei graças a Deus pelas esquisitices particulares a que as pessoas não conseguem resistir.
            — É normal, ela ainda está muito assustada. Mas eu já vim preparada para isso — digo, dando tapinhas na bolsa térmica que trouxe. — Quer um?
            — O sanduíche esquisito? — ele pergunta, adivinhando e torcendo o nariz. Pelo visto eu não fui a única a descobrir qual era a “comida de consolo”, como a batizamos. — Não, obrigado, Clara. Sem ofensa, mas... É...
            — Eu trouxe um mais normal para você, se preferir — argumento, rindo do embaraço dele.
            — Bem, nesse caso... Eu até já comi alguma coisa, mas não vou desperdiçar sua gentileza. Ao contrário do que acontece com a Marina, estresse me dá fome.
            Tenho lá as minhas suspeitas de que ele esteja apenas sendo gentil comigo, mas não fico analisando demais. Fernando parece ter um talento especial para deixar as pessoas confortáveis, e é assim que me sinto desde a primeira palavra que troquei com ele hoje, apesar das circunstâncias. Apesar de toda a estranheza que minha presença —  que minha própria existência, na verdade —  deve ter-lhe causado, ele me fez sentir como se eu fosse parte da família. Como se eu tivesse todo o direito de estar ali. Sou muito grata por isso, mas não só por esse motivo.
            Ele ama Marina. Cuida dela e de Caio com devoção e é, de fato, o homem que conheci pelos olhos deles. Se não houvesse outra razão, isso já seria suficiente para que eu o admirasse. Mas além disso, eu me sinto bem em sua presença. Acolhida. Não há um único traço de desconfiança ou julgamento em seus olhos, o que torna praticamente impossível não gostar dele. E acho que nunca fui tão grata a alguém.
            — Obrigada — digo sem pestanejar quando recebo seu sorriso.
            — Pelo que, precisamente?
            — Por tudo. Por cuidar deles. Por não questionar minha presença aqui. Por... tentar compreender, eu acho. Deve ser difícil.
            — Não, Clara — ele balança a cabeça com firmeza, parecendo absolutamente certo do que vai dizer.  — Se tem uma coisa que não é difícil compreender nisso tudo é o amor que ainda une vocês.
            — É, acho que você tem razão. — Não dá para discutir com essa lógica!
            — O resto da situação é um tanto inusitada, mas acho que posso me acostumar — ele diz, pegando o sanduíche em minha mão e sorrindo de um jeito ao mesmo tempo sério e descontraído. — Preciso ir agora, minha filha está me esperando. Tente fazer Marina comer, por favor.
            — Pode deixar. — Não há mais muito que eu possa dizer para ele. E, de qualquer jeito, estou boquiaberta demais para ser coerente.
            — Olha, Clara, não se preocupe com nada, está bem? — Fernando diz, com a mão em meu ombro. — Vamos nos preocupar com qualquer coisa que seja depois que o Teo estiver curado.
            Teo. Caio disse mesmo que só Marina e eu o chamávamos pelo nome. Acho até engraçado constatar que é verdade. Não é à toa a confusão quando o conheci. Quando eu poderia pensar que Fernando Teodoro Peres existia e tinha mudado tantas coisas na vida dos dois? Mas, bem, acho que eu devia ter imaginado. Afinal, ninguém melhor do que eu sabe que os anjos andam pela Terra.
            Fico ali parada um tempo, observando-o se afastar.
            É. Definitivamente, é fácil demais gostar de Fernando.

            Quando entro no quarto, tudo está mais ou menos como eu deixei: Caio dormindo e Marina vigiando seu sono. No entanto, a atmosfera está mais leve. Como eu tinha previsto, ela não resiste à “comida de conforto”, e consigo facilmente cumprir minha promessa a Fernando. Enquanto isso, ela me conta que os intervalos que Caio passa acordado agora estão mais longos, e que ele parece mais lúcido também.
            Como se estivesse ouvindo, ele se mexe um pouco e abre os olhos, focalizando-os em nós duas de um jeito que eu não o tinha visto fazer ainda. Fico feliz.
            — Caio! — exclamo e ele sorri para mim com um ar sonolento.
            — Como está se sentindo, meu amor? — pergunta Marina.
            — Como se tivesse sido atropelado.
            Por um instante, seus olhos se fecham de novo, bem devagar enquanto ele engole em seco. A voz está áspera e fraca, mas parece música para mim. O alívio que me inunda é quase atordoante.
            — Ainda está com muita dor?
            — Um pouco, mas estou bem. — Ele solta um gemido tentando se acomodar melhor na cama e Marina corre para ajudá-lo. — Acho. Obrigado, mãe. — Enquanto fala, ele olha bem no rosto dela, e então repara em seus olhos inchados. — Ei, você andou chorando? Ah, não! Desculpa, por favor! Não chora, mãe.
            Caio faz uma cara condoída e isso só faz deixar os olhos de Marina marejados de novo. A preocupação dele com ela é tão bonita que mal dá para aguentar não abraçá-lo. Sem pensar, seguro a mão dela e acaricio o rosto dele com a outra. Então, no instante seguinte, me dou conta do erro cometido quando a testa de nosso menino se franze em confusão.
            — Clara, você e minha mãe se conhecem? Como foi que você ficou sabendo que eu estava aqui?

            Oh-oh.

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