Capítulo 32 – As Coisas que Acontecem
When
your day is long and the night
The
night is yours alone
if
you're sure you've had enough of this life
Well
hang on
Don't
let yourself go, 'cause everybody cries
and
everybody hurts, sometimes ...
(…)
'Cause
everybody hurts
Take
comfort in your friends
(Everybody Hurts – REM)
A voz de
Marina me acorda às 4:23 da manhã. “Aconteceu uma coisa”, ela diz e está
chorando muito. Fernando pega o telefone e me passa o endereço para onde dirijo
quase às cegas, grata por não me perder mesmo sabendo o caminho de cor.
“Aconteceu uma coisa. ”
As palavras ficam se repetindo num
ciclo infinito e destrutivo dentro de minha cabeça, esmigalhando todos os meus
pensamentos coerentes e abrindo espaço para as imagens horrendas que se prendem
ao lado de dentro de minhas pálpebras. Elas me machucam e me impedem de fechar
os olhos para me defender da dor. Espantar o mundo lá fora não é mais uma opção
quando o meu próprio não é mais seguro.
Sangue. Os quadros horríveis que
vejo estão pintados de vermelho-sangue.
Assim que chego ao hospital, Marina
se agarra a mim. É como antes, quando precisávamos uma da outra e eu era a
única pessoa que ela tinha. Acho que é porque ainda preciso dela tanto que este
abraço amedrontado me torna ainda mais consciente de tudo o que posso perder.
Neste momento, nada mais importa, a não ser segurar-me a ela também, desejando
poder tomar sua dor e sua aflição para mim.
Fernando se aproxima e eu o vejo,
por sobre o ombro de Marina, me observar com olhos cansados e tristes. Tem algo
de estupefação também, como se só agora ele tivesse entendido de verdade o que
ela certamente lhe falou sobre nossa história. Sei que ele tem muitas
perguntas, mas não vai fazê-las neste momento. Eu também não digo nada, apenas
lhe dou o direito ao pasmo que lhe causo.
Ainda consigo sorrir para ele,
porém. Porque mesmo em uma situação em que sorrisos parecem antinaturais, não é
assim com aquele homem que já me parece tão familiar. Principalmente quando ele
também me sorri, contidamente, dolorosamente, em reconhecimento. Sabe que
amamos as mesmas pessoas, e que isso nos torna personagens da mesma história.
Sentamos juntos no sofá da sala de
espera enquanto ele me conta que, não muito longe da saída de um clube noturno,
uma moto atingiu Caio em cheio, quebrando suas costelas e rompendo seu baço,
fazendo com que ele sangrasse por dentro, como parecia que eu sangrava agora
imaginando a cena. Ele foi deixado ali, sozinho, e teria morrido se alguém que
viu o motoqueiro se levantar trôpego e fugir do local não tivesse chamado
socorro imediato.
Marina aperta forte minha mão, e eu
a dela, quando as palavras de Fernando desenham para mim as cenas que doem em
nós três. Conto a eles sobre Esther e sobre o Caio embriagado e arredio de mais
cedo. Sobre como ele não aceitou o táxi para casa e parecia disposto demais a
se sujeitar às vontades da “amiga”. Eles me olham incrédulos, tão certos de que
aquele não é o filho que conhecem, como de que agora não importa mais. Que
mesmo que ele tenha atraído aquilo, tudo o que queremos é que as coisas
terminem bem. Da maneira como teriam terminado se aquela mulher não tivesse
cruzado seu caminho.
Imagino o momento em que ela o
deixou sozinho e fora de si, completamente incapaz de cuidar de si mesmo, e
quando ele deve ter tentando ir para casa a pé, sem, no entanto, dar conta dos
passos de suas próprias pernas. Tenho vontade de voltar no tempo e impedir, em
todos os momentos e de todas as formas que teriam sido possíveis, que ele
saísse do On the Rocks com aquela...
Sim, eu a considero culpada. Ele é
adulto o suficiente para se responsabilizar pelos próprios atos e eu não o
estou eximindo disso. Ninguém o forçou a beber. Mas, no momento, não consigo
enxergá-lo dessa maneira. Enquanto estou aqui, na companhia de seus pais
aflitos, limpando inutilmente as lágrimas que escorrem sem parar pelo rosto de
Marina, ele é só um garoto. Meu
garoto. Deitado em uma maca, passando por uma cirurgia de emergência quando a
lembrança de sua vivacidade é mais recente do que a última vez em que vi a luz
do dia.
Porém, por mais escura que a noite
pareça, eventualmente chega a manhã. Fernando vai ligar para o amigo que ficou
cuidando da filhinha deles, enquanto Marina e eu ficamos dividindo o silêncio
da aurora numa sala de espera de hospital. É como se o dia amanhecesse
diferente aqui. Como se o tempo corresse pelos trilhos quebrados de uma
paisagem estranha que se força a parecer normal. De repente, ela parece se
lembrar de alguma coisa.
— O homem que chamou a ambulância,
eu esqueci! — ela diz, fungando um pouco. Seus olhos estão secos agora, mas
qualquer um que a veja pode perceber o quanto chorou. No entanto, neste momento
em que está mais calma, parece ter conseguido trazer uma coisa qualquer à tona.
— Esqueceu o quê? — pergunto, sem
ter a mais mínima ideia de aonde ela quer chegar.
— De te contar... foi muito
esquisito nosso encontro. Quer dizer, não ele, que foi extremamente gentil.
Veio na ambulância com meu filho e esperou aqui por nós, para tentar nos
tranquilizar. Ele nem precisava fazer nada disso, mas, além de tudo, ainda
disse que se colocava à nossa disposição para qualquer coisa, que ia voltar
para o hotel em que estava e descansar um pouco, porque tinha chegado há pouco
de viagem, mas que podíamos ligar para ele a qualquer momento se precisássemos.
Eu até era capaz de entender como
algo assim podia causar estranheza nas pessoas. Infelizmente, vivemos numa
época pouco generosa. Mas no meu mundo não era algo anormal. Seria exatamente o
que eu faria.
— Gentil mesmo. Mas as pessoas boas
existem, Marina. Eu não estranho, na verdade. Só fico feliz que alguém assim
tenha aparecido na hora certa.
— Sim, eu também. Concordo
plenamente. A verdade é que depois do que você fez por mim eu meio que me
acostumei com o fato de que há bondade e gentileza no mundo, mas não foi isso
que eu achei esquisito, foi a coincidência.
— Que coincidência?
— Ele estava indo embora, mas quando
eu disse meu nome, na hora em que nos despedimos, ele se surpreendeu. Aí ficou
me olhando um pouco e disse que me reconhecia das fotos...
— Fotos?
— Sim, que ele viu em sua casa.
— Como é?
Eu quase não tenho fotos. Na
verdade, as evito a todo custo. Só tenho algumas de meus pais e outras tantas
que trouxe comigo quando fui embora da casa que deixei para Marina. Eu as
peguei para não correr o risco de deixar minha imagem registrada e alguém topar
comigo e me reconhecer. Mas não me livrei delas. Achei que não ofereciam perigo
se ficassem guardadas comigo. E por isso mesmo eu nunca as mostrei a ninguém,
exceto...
— Alberto? Por acaso esse homem
disse que se chamava Alberto?
Será
mesmo?
— Sim. Alberto... — Ela franze o
cenho, tentando se lembrar. E então meu coração se abre como uma flor quando
ouço a resposta: — Sampaio, eu acho. É. Isso mesmo. Alberto Sampaio.
Meu
Deus!
Minha mente se enche de perguntas,
mas a alegria que sinto é suficiente para preencher as lacunas. Claro que quero
saber por que ele não me avisou que estava na cidade ou por que decidiu vir
agora, como se soubesse que preciso dele hoje mais do que nunca. Mas a verdade
é que não importa. Ele está aqui. Cuidou de Caio e, de certa forma, também de
mim. Mesmo consideradas as circunstâncias em que nos reencontraremos, estou
muito feliz por tê-lo de volta.
— Não foi coincidência, Marina. Ele
estava na hora certa e no lugar certo porque veio aqui nos ajudar. Alberto é o meu anjo.
Quando Fernando volta, conto a eles
tudo sobre Beto. Os dois me questionam se ele não poderia ter interferido antes
e evitado o acidente, e é difícil explicar que não está ao nosso alcance saber
por que o Chamado determina que evitemos certas coisas e outras não. Às vezes, como
agora, eu também não entendo e queria que fosse diferente, mas a trama das
coisas não nos pertence e não nos resta remédio senão aceitar isso.
Eventualmente, eles conseguem lidar com a ideia, embora ainda pareçam um pouco
confusos e frustrados, e eu os deixo com suas cogitações para fazer o que
estava louca para fazer desde que ouvi o nome dele hoje: ligar para Alberto.
— Bom dia, minha Estrela — ele diz
assim que atende, como se estivesse esperando a ligação, e provavelmente
estava. — Como está o menino?
— Na sala de recuperação. Logo que
possível vão trazê-lo para o quarto. Ele vai ficar bem.
Conhecendo-me como conhece, ele
certamente pode sentir o alívio em minha voz. E eu, o sorriso na dele.
— Que bom. Embora eu não esteja
surpreso, é um conforto saber. Senti que ele ia ficar bem. Não teria razão para
eu estar lá se não fosse esse o caso.
— Você ouviu o Chamado?
— Sim. Alto e claro. O que é
curioso...
— Curioso? Por quê?
— Explico depois, quando nos
encontrarmos. Tirei uns dias para te ver, temos muito para conversar.
— Mas, Beto... Por que você não me
ligou? E por que está em um hotel em vez de hospedado na minha casa?
— Eu queria fazer uma surpresa — ele
ri, com o ar de menino que um século inteiro não foi capaz de apagar. Sempre
teve essa mania de surpresas, e não posso dizer que acho ruim, mas ficar alegre
em antecipação pela vinda dele faz mais meu estilo. De qualquer jeito, não vou
me queixar. — Além do mais, não achei prudente chegar de mala e cuia e me
hospedar em sua casa agora que você tem namorado.
Eric. Toco mecanicamente o pingente
de âmbar em meu pescoço e uma sensação opressiva preenche meu peito. Toda a
raiva e o ciúme que senti desapareceram por completo, mas em seu lugar sobrou
um gosto ruim em minha boca, pela maneira como as coisas ficaram entre nós. Ou
não ficaram. Nem sei o que pensar. É a primeira vez que algo assim acontece
comigo e, de repente, as dúvidas me assaltam. Será que ele ainda está bravo?
Magoado? Será que é cedo ou tarde demais para procurá-lo? De todo jeito, não
vou falar sobre isso com Alberto. Não agora.
— E por que você não ficou aqui ou
me avisou sobre o que tinha acontecido com Caio? — pergunto em vez disso.
Porque essas também são coisas que quero saber.
— Seria estranho eu ficar, era um
momento de família. E quanto a te avisar, eu sabia que Marina ia te ligar se
quisesse sua presença. Do mesmo jeito que sabia que, caso eu te avisasse antes,
você correria para o hospital, mesmo que ela não quisesse. Resolvi deixar que
ela decidisse. Eu ia te procurar hoje, assim que acordasse, e se você não
soubesse eu te diria e iria com você até aí, mas achei melhor que fosse quando
as coisas já estivessem mais calmas para ela.
Neste ponto me lembro porque o amo
tanto. Alberto tem que ser Alberto. O tipo de pessoa que pensa em tudo e em
todos, que considera todos os ângulos de uma situação, mas que sempre toma suas
decisões finais considerando aquele que, dentre os envolvidos, mais precisa de ajuda.
Ele não conhece Marina, mesmo assim soube melhor do que eu qual decisão tomar
pelo bem dela. E, no fim, pelo meu também.
— Tem razão — admito. — A prioridade
deveria mesmo ser Marina e Fernando. E, pelo que conheço dela, foi melhor
assim. Aparecer sem ser chamada naquele momento poderia ter tido um resultado
desastroso.
— Creio que sim, Clarinha. Por um
tempo, você vai ter que se conformar em ter, na vida dela, o lugar que ela te
der. Mas veja só como as coisas caminham naturalmente para onde devem ir: você
está aí ao lado dela. Porque ela quis. No momento em que mais precisou, Marina
soube onde encontrar apoio.
É impossível não sentir meu coração
se aquecer quando me dou conta disso. Antes que o médico viesse nos informar
sobre a cirurgia, eu não conseguia pensar em mais nada que não fosse Caio, mas
agora que a tempestade se foi, consigo me permitir um raio de sol. E os anos de
solidão que ele derrete em mim já não se parecem mais com as neves eternas que,
nos dias mais escuros, cheguei a acreditar que fossem.
— É, acho que foi isso mesmo. Você
sempre tem razão. É irritante — provoco, porque essa é uma antiga brincadeira
nossa. Ou minha, para ser exata. Porque é verdade que ele costuma ter razão em
tudo, só que eu não me irrito com isso. Pelo contrário, acho reconfortante. Mas
em vez de só reconhecer, acaba sendo mais divertido parecer uma irmã manhosa.
Ele sempre acha engraçado.
Só agora percebo o quanto meus
músculos estavam retesados, e ouvir a risada gostosa dele me ajuda a relaxar um
pouco. Posso sentir os nós de tensão começando a se desfazer e deixando uma dor
incômoda no lugar. Isso sem contar que mal cheguei a dormir mais que uma hora
hoje. Mas estou aliviada e quase feliz. Se comparado a como eu estava me
sentindo há algumas horas, é praticamente o céu. Tenho muito pelo que ser
grata.
— Senti sua falta mais do que nunca
nos últimos meses, Beto.
— Eu sei. Foram meses agitados para
você. E eu sou o primeiro em quem você pensa para resolver seus problemas.
Embora seja verdade, sei que ele
está dizendo isso para me insultar, sabendo que esse tipo de “acusação” sempre
termina em um elogio da minha parte, ou no reconhecimento puro que neguei há
pouco. Mas estou me sentindo subitamente bem-humorada, e resolvo dificultar um
pouco a vida dele.
— É bem por aí mesmo. É mais fácil
me lembrar de você nesses momentos. Caso contrário, acabo me esquecendo.
— Ah, é assim, sua malcriada? — ele
diz, entrando no jogo com a facilidade de sempre. —Desaprendeu que os mais
velhos merecem respeito?
— Os muito mais velhos, você quer
dizer, né? Desculpe, Senhor Sampaio. Realmente, os anciões merecem um
tratamento mais cuidadoso.
— Má influência. Só pode ser má
influência. — Posso até vê-lo balançando a cabeça com cara de descrença
fingida. — A gente faz tudo pelos mais jovens e olha só o que ganha em troca!
Vou ter que conversar com essas pessoas com quem você anda saindo.
A brincadeira me traz de volta à
realidade, porque percebo que, desta vez, as pessoas “com quem ando saindo” são
mais importantes do que eu jamais poderia prever que seriam. Os laços que estou
forjando aqui me parecem cada vez mais permanentes. Antes, a única constante de
minha existência era Alberto, mas agora... Agora tenho uma vida aqui. Como
quando conheci Marina há vinte anos. E pensar nos dois fazendo parte do mesmo
cenário! Um em que também estão presentes Eric e Paty... É como se as melhores
partes de minha vida estivessem se conectando.
É lindo. E assustador também.
— Falando sério, quando vou te ver?
— pergunto, porque o frio na barriga só faz aumentar a saudade.
— Falando sério, à hora que você
quiser. Estou aqui por você, Clara. Mas acho que hoje é melhor você se
concentrar na sua família. Fique com sua menina, eu posso esperar até amanhã
para ver a minha.
Sorrio. Alberto sempre consegue
arrancar de mim sorrisos inesperados. Ou talvez eles só fiquem esperando por
ele para acontecer.
********
Caio não fica muito tempo acordado.
Por causa da anestesia, ele está sonolento e confuso. Abre os olhos de vez em
quando e balbucia algumas coisas aleatórias e meio sem sentido, mas nota-se que
suas pálpebras estão pesadas e que é difícil mantê-las abertas por mais do que
alguns minutos. No entanto, é melhor assim.
Quando está acordado, uma das poucas
coisas coerentes que diz é que está com dor, o que deixa Marina em frangalhos,
por mais que ela tente disfarçar. Fernando está se desdobrando entre a própria
preocupação de pai e a necessidade de acalmá-la, então eu tento fazer isso,
dizendo que é normal sentir dor depois de tudo o que aconteceu e que ele vai
ficar bem. Obviamente, não adianta muito. Ela está fragilizada, cansada e todos
os seus pensamentos giram em torno do que Caio está sentindo. Dizer a ela que
ver o filho sofrer é natural não parece muito consolador, nem tampouco lógico.
Ainda assim, sinto que minha companhia acaba sendo, de qualquer forma, uma espécie
de conforto.
Infelizmente, as regras do hospital
não permitem três pessoas no quarto. Fernando saiu um pouco para que eu pudesse
entrar e depois, quando ninguém estava olhando, se esgueirou de volta, de
maneira que fico com eles enquanto consigo, mas sei que, eventualmente, terei
que partir. A hora chega quando uma enfermeira — gentil o bastante para fingir acreditar
que não sabíamos das regras — avisa que um de nós precisa sair.
Vou para casa depois disso, cuidar
de Blue e tentar descansar um pouco, mas é tudo em vão. Não consigo relaxar o
suficiente para me deitar e quando tento me alimentar a comida não desce. Os
quadros terríveis que imaginei quando o telefone tocou ainda estão pregados em
meus olhos e, agora que estou longe, não consigo convencer meu coração de que
está tudo bem com os três.
Toda aflição que sufoquei para
tranquilizar Marina parece ter aflorado agora que estou sozinha e posso dar
atenção à minha própria dor. Por fim, tudo em que consigo pensar é que fui
embora cedo demais, que devia ter ficado lá, mesmo que na sala de espera, para
ajudá-los caso precisassem de alguma coisa. Para ver Caio por mais cinco
minutos, talvez. Para estar, enfim, à disposição das pessoas que ocupam meu
pensamento, em vez de à mercê da angústia que me toma agora que estou longe deles.
Até Blue, sempre tão brincalhão,
parece sentir alguma coisa no ar e fica à minha volta, tentando me consolar,
mesmo sem entender por quê. E enquanto ele me olha com seus grandes olhos
amorosos e me dá lambidinhas de um jeito tão preocupado quanto um cãozinho pode
ficar, tomo a decisão mais óbvia.
Tento me mostrar alegre para que ele
não sinta a tensão no ar, mas é desnecessário, porque ele percebe sozinho que
minha disposição mudou e trata de comer a ração que ofereço, parecendo bem mais
tranquilo. Certifico-me de que ele esteja bem alimentado e depois vou tratar de
mim mesma.
Consigo me forçar a tomar um copo de
leite e a comer um sanduíche, do jeito que Marina gostava. Então, com isso em
mente, preparo um lanche para ela e para Fernando, porque pretendo conseguir
que eles comam também. Depois tomo um banho rápido e encontro o telefone de um
serviço de hospedagem para pets, onde
deixarei Blue. Não é muito barato, mas não quero me preocupar que ele esteja
aqui sozinho o dia todo, então a decisão é rápida.
Não preciso avisar ninguém no bar,
porque hoje é minha folga, mas decido ligar para Paty. Ela fica arrasada e
combinamos de nos encontrar no hospital durante o horário de visitas, para
entrarmos juntas. Não digo a ela que já estive lá ou que pretendo passar o
resto do dia acampada na sala de espera. Em vez disso, digo que ele acordou e
pediu à mãe que avisasse a nós duas. Talvez ela perceba algo da minha mentira
quando estivermos na presença dele, mas deixo para me preocupar com isso quando
chegar a hora.
Penso em ligar para Eric também, mas
não estou preparada para dizer as coisas que ele precisa ouvir, por mais que eu
queira dizê-las. Acabei pensando muito na noite de ontem e, agora que consigo
me distanciar do momento o suficiente para enxergá-lo com mais clareza, percebo
o que ele deve ter sentido quando me viu tão preocupada, disputando Caio com
Esther e me irritando tanto com sua interferência.
Gostaria de não ter ficado tão
nervosa a ponto de ir embora sem falar com ele, mas a verdade é que não
consegui, naquele momento, me colocar no lugar de Eric. Agora, porém, consigo
perceber que, da forma como ele vê, eu agi como se estivesse com ciúmes de
Caio. E tê-lo ignorado pelo resto da noite, demonstrando minha irritação,
certamente só fez reforçar essa impressão.
Sinto que preciso desfazer isso, mas
não estou nem perto de poder explicar a Eric que meus sentimentos por Caio não
são do tipo que ele imagina. Dizer que Caio é apenas um amigo querido não é
algo que soaria convincente agora, quando estou prestes a dedicar as próximas
horas à promessa de ter ao menos uns minutos com ele.
Ainda assim, mesmo sem saber o que
dizer, sinto vontade de dizer alguma coisa. Olho para o celular, indecisa. Sei
que não é o tipo de coisa para se conversar ao telefone, mas não sei quando vou
vê-lo de novo e, de repente, cada minuto sem ouvir a voz dele, sentindo que
posso tê-lo magoado, me parece longo demais para aguentar. Por fim, cedo ao
impulso e ligo, a expectativa crescendo dentro de mim como se o som dos toques
da chamada fosse ficando mais alto até se tornar ensurdecedor.
Ele demora a atender e eu fico
imaginando se está olhando para a tela, tão indeciso quanto eu estava há pouco,
pensando se quer ou não ouvir minha voz. Minha própria decisão começa a enfraquecer
à medida em que começo a sentir cada toque como algum tipo de pancada que vem
de dentro. Já estou prestes a desligar quando ele atende e minha respiração
fica suspensa.
— Oi. — Seu tom é cuidadoso, quase
hesitante, mas a voz dele cola-se em mim como sempre. Minha canção. O som faz meu coração bater forte em antecipação.
Entretanto ele não diz mais nada.
— Oi — respondo.
— Como você está?
Não é uma pergunta mecânica, dá para
perceber. Ele realmente quer saber como estou, antes de falarmos sobre qualquer
outra coisa. Reparo pela primeira vez que ele sempre faz isso e a percepção me
comove. Sinto vontade de dizer tantas coisas que nem sei como começar. Nem
mesmo faço ideia de como responder a pergunta que ele acabou de me fazer.
—
Bem — simplifico, mas então uma ardência de lágrimas contidas toma conta de
meus olhos. Hesito por alguns instantes, pensando nas próximas palavras. —
Eu... Ahn... Não, na verdade, não. Não estou tão bem. É o Caio, ele... sofreu
um acidente e está no hospital.
De repente, não consigo me conter.
Eric me faz sentir uma estranha compulsão de dizer-lhe a verdade. Como se eu
não conseguisse construir barreiras quando sinto a preocupação em sua voz. Ele
fica em silêncio uns instantes, processando a informação. Quando volta a falar,
seu tom parece ainda mais cuidadoso do que antes.
— Como aconteceu? Alguém mais... —
Ele para por um instante, tentando reorganizar suas perguntas. Ouço quando ele
solta uma respiração lamentosa e contida, e sua voz fica mais baixa. — Seu
amigo vai ficar bem, Luz?
— Sim, acho que vai. Ele passou por
uma cirurgia no início da manhã, mas já está no quarto. Estava bêbado demais,
andando sem cuidado por aí, e acabou sendo atropelado por uma moto.
— Uma moto? Sabem quem foi?
— Não, a pessoa fugiu sem prestar
socorro.
Ficamos em silêncio de novo. As
lágrimas que eu estava contendo começam a deslizar de forma lenta, mas
persistente por minha pele. De alguma forma, acho que ele sabe.
— Sinto muito, amor — sua voz doce
me reconforta, e as palavras parecem querer dizer mais do que aparentam.
— Eu também — respondo com a voz
embargada. — Sinto muito mesmo.
Fico ali parada, desejando poder
voltar para a tarde de ontem, quando estava aconchegada em seus braços enquanto
ele zombava de um filme que passava na TV. Antes das coisas ruins acontecerem e
da realidade de hoje fazer nossa outra parecer um sonho.
— Me diga o que fazer, Clara. Diga o
que você precisa e eu farei. Só não chore quando não posso estar aí ao seu lado
para te consolar. Me deixa louco.
— Desculpe. Não quero preocupar
você.
— Não acho que tenhamos essa opção.
Eu me preocupo de qualquer jeito.
— Não precisa, estou bem. Só foi um
dia emotivo. Mas você me faz sentir melhor. Falar com você me acalma.
— Estou indo aí vê-la. Me dê uns 20
minutos, ok?
Por um momento, tudo o mais some ao
meu redor. Só consigo sentir a necessidade urgente de dizer “sim”. Quero tê-lo
ao meu lado e relaxar em sua presença. Quero dizer a ele que o mundo é perfeito
quando ele está comigo. Mas o mundo não está perfeito e não posso relaxar.
Preciso estar lá para Marina. Não me sentiria eu mesma se não o fizesse.
— Vou ao hospital.
— Claro — ele diz, depois de um
segundo. — Vá ver o seu amigo. Me procure quando... quando precisar. Pode ser a
hora que for, é só dizer uma palavra e estarei aí, se você quiser. Ou busco
você onde estiver.
— Obrigada, Eric.
— Só quero que você fique bem.
— Vou ficar. — O silêncio que paira
entre nós está impregnado de palavras não ditas, mas parece não ser o momento
para nenhuma delas. — Eu não quero desligar, mas preciso.
— Eu sei, Luz. Está tudo bem. Nós
nos falaremos depois. Vá fazer o que você precisa.
— Certo. Eu só...
— O quê?
— Senti sua falta.
De repente, preciso que ele saiba
disso. Mesmo que a consciência do quanto só tenha me atingido há pouco. Em meio
a todas as coisas que aconteceram hoje, a todos os sentimentos e urgências que
me povoaram, eu nem tinha me dado conta de quantas vezes a imagem dos olhos
tristes dele tinha ocupado meus pensamentos. Mas agora, ouvindo a compreensão
em suas palavras doces, seu claro desejo de me manter segura e de estar aqui
para mim, o entendimento se torna inescapável. As palavras crescem em minha
garganta e precisam sair para que eu respire.
— Eu também — ele responde, e meus
olhos se fecham para absorver o som. — Bye, my sweetheart.
— Bye, my love — sussurro de volta,
mas ele já desligou.
O alívio que me invade faz a dor em
meu peito sumir. Seguro novamente o pingente, acariciando a lembrança de nós
dois e sentindo meu coração ficar mais leve. Quando liguei para ele, eu não
sabia direito o que estava fazendo, mas agora percebo que era tudo o que
precisava. Eric me fortalece. A presença dele. A voz. As palavras. A intenção
por trás de cada uma delas.
Em tão pouco tempo, ele se tornou
mais necessário do que eu jamais poderia prever, do que eu jamais me permitiria
se tivesse escolha. Deixei que ele criasse essa bolha ao meu redor, este mundo
só nosso onde posso me sentir segura quando estou frágil. Por causa dele. Só
por causa dele.
Sei o quanto isso é perigoso, nunca
me esqueci da minha impressão naquele primeiro dia. A de que ele era um abismo
irresistível. E ele continua sendo. Mas por razões que ainda apenas meu coração
reconhece, ele é também meu salto de fé. Aquele que só agora eu sei que sempre
estive disposta a dar.
********
Ainda falta algum tempo para o
horário de visitas quando chego ao hospital, entretanto não preciso ficar
esperando para poder ver Caio. Encontro Fernando de saída para ver a filha e
descansar um pouco, para poder voltar mais tarde. Agora mais tranquilos, ele e
Marina já acertaram os horários para se revezarem, cada um cuidando de um dos
filhos.
— Ela está irredutível quanto a
passar esta primeira noite aqui — ele me conta, mas nem precisava, porque eu
tinha certeza de que ela não arredaria pé enquanto pudesse evitar. — Mas
consegui convencê-la a dar uma passada rápida em casa mais tarde. Vai fazer bem
a ela sair um pouco daqui. Então, lá pelas 6 horas, eu volto para que ela possa
ir jantar com a Clarinha. Quem sabe assim ela come alguma coisa.
Entendo a preocupação dele. Marina
se recusa a comer quando está nervosa. Já era assim quando a conheci e, pelo
visto, não mudou. Eu ficava louca de preocupação, até que descobri sua fixação
por sanduíches de pão francês com omelete de legumes no meio. E dei graças a
Deus pelas esquisitices particulares a que as pessoas não conseguem resistir.
— É normal, ela ainda está muito
assustada. Mas eu já vim preparada para isso — digo, dando tapinhas na bolsa
térmica que trouxe. — Quer um?
— O sanduíche esquisito? — ele
pergunta, adivinhando e torcendo o nariz. Pelo visto eu não fui a única a
descobrir qual era a “comida de consolo”, como a batizamos. — Não, obrigado,
Clara. Sem ofensa, mas... É...
— Eu trouxe um mais normal para
você, se preferir — argumento, rindo do embaraço dele.
— Bem, nesse caso... Eu até já comi
alguma coisa, mas não vou desperdiçar sua gentileza. Ao contrário do que
acontece com a Marina, estresse me dá fome.
Tenho lá as minhas suspeitas de que
ele esteja apenas sendo gentil comigo, mas não fico analisando demais. Fernando
parece ter um talento especial para deixar as pessoas confortáveis, e é assim
que me sinto desde a primeira palavra que troquei com ele hoje, apesar das
circunstâncias. Apesar de toda a estranheza que minha presença — que minha própria existência, na verdade — deve ter-lhe causado, ele me fez sentir como
se eu fosse parte da família. Como se eu tivesse todo o direito de estar ali.
Sou muito grata por isso, mas não só por esse motivo.
Ele ama Marina. Cuida dela e de Caio
com devoção e é, de fato, o homem que conheci pelos olhos deles. Se não
houvesse outra razão, isso já seria suficiente para que eu o admirasse. Mas
além disso, eu me sinto bem em sua presença. Acolhida. Não há um único traço de
desconfiança ou julgamento em seus olhos, o que torna praticamente impossível
não gostar dele. E acho que nunca fui tão grata a alguém.
— Obrigada — digo sem pestanejar
quando recebo seu sorriso.
— Pelo que, precisamente?
— Por tudo. Por cuidar deles. Por não
questionar minha presença aqui. Por... tentar compreender, eu acho. Deve ser
difícil.
— Não, Clara — ele balança a cabeça
com firmeza, parecendo absolutamente certo do que vai dizer. — Se tem uma coisa que não é difícil
compreender nisso tudo é o amor que ainda une vocês.
— É, acho que você tem razão. — Não dá para discutir com essa lógica!
— O resto da situação é um tanto
inusitada, mas acho que posso me acostumar — ele diz, pegando o sanduíche em
minha mão e sorrindo de um jeito ao mesmo tempo sério e descontraído. — Preciso
ir agora, minha filha está me esperando. Tente fazer Marina comer, por favor.
— Pode deixar. — Não há mais muito
que eu possa dizer para ele. E, de qualquer jeito, estou boquiaberta demais
para ser coerente.
— Olha, Clara, não se preocupe com
nada, está bem? — Fernando diz, com a mão em meu ombro. — Vamos nos preocupar
com qualquer coisa que seja depois que o Teo estiver curado.
Teo. Caio disse mesmo que só Marina
e eu o chamávamos pelo nome. Acho até engraçado constatar que é verdade. Não é
à toa a confusão quando o conheci. Quando eu poderia pensar que Fernando
Teodoro Peres existia e tinha mudado tantas coisas na vida dos dois? Mas, bem,
acho que eu devia ter imaginado. Afinal, ninguém melhor do que eu sabe que os
anjos andam pela Terra.
Fico ali parada um tempo,
observando-o se afastar.
É. Definitivamente, é fácil demais
gostar de Fernando.
Quando entro no quarto, tudo está
mais ou menos como eu deixei: Caio dormindo e Marina vigiando seu sono. No
entanto, a atmosfera está mais leve. Como eu tinha previsto, ela não resiste à
“comida de conforto”, e consigo facilmente cumprir minha promessa a Fernando.
Enquanto isso, ela me conta que os intervalos que Caio passa acordado agora
estão mais longos, e que ele parece mais lúcido também.
Como se estivesse ouvindo, ele se
mexe um pouco e abre os olhos, focalizando-os em nós duas de um jeito que eu
não o tinha visto fazer ainda. Fico feliz.
— Caio! — exclamo e ele sorri para
mim com um ar sonolento.
— Como está se sentindo, meu amor? —
pergunta Marina.
— Como se tivesse sido atropelado.
Por um instante, seus olhos se
fecham de novo, bem devagar enquanto ele engole em seco. A voz está áspera e
fraca, mas parece música para mim. O alívio que me inunda é quase atordoante.
— Ainda está com muita dor?
— Um pouco, mas estou bem. — Ele
solta um gemido tentando se acomodar melhor na cama e Marina corre para
ajudá-lo. — Acho. Obrigado, mãe. — Enquanto fala, ele olha bem no rosto dela, e
então repara em seus olhos inchados. — Ei, você andou chorando? Ah, não!
Desculpa, por favor! Não chora, mãe.
Caio faz uma cara condoída e isso só
faz deixar os olhos de Marina marejados de novo. A preocupação dele com ela é
tão bonita que mal dá para aguentar não abraçá-lo. Sem pensar, seguro a mão
dela e acaricio o rosto dele com a outra. Então, no instante seguinte, me dou
conta do erro cometido quando a testa de nosso menino se franze em confusão.
— Clara, você e minha mãe se
conhecem? Como foi que você ficou sabendo que eu estava aqui?
Oh-oh.
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